Sondas alimentares: cuidados básicos ou tratamentos médicos?

A polêmica envolvendo Terri Schiavo – norte-americana em coma vegetativo persistente que, ainda que inconscientemente, polarizou as discussões mundiais sobre eutanásia – trouxe a público variadas visões de autoridades a respeito da ética na interrupção da alimentação e hidratação a pacientes em estado grave. Renomados bioeticistas, o presidente dos EUA e até o Papa adotaram os mesmos termos, como “dignidade”; “obrigação moral”; e “direitos humanos”,  para defender pontos de vistas opostos.

Nessa história, a sonda alimentar e de hidratação, de aparato médico relativamente simples foi “promovida” a espécie e personagem central, capaz de gerar reflexões e dilemas. Pode-se ou não retirar os tubos que mantêm a vida de pacientes em coma vegetativo persistente, ainda que a pessoa não seja considerada “doente terminal”? E se ela, quando saudável, solicitou a interrupção de recursos extraordinários em situações semelhantes?  

Diferentes culturas, diferentes visões
Em primeiro lugar cabe destacar: em casos como o vivido por Terri, o que vale para os EUA pode não valer para o Brasil – ou, no mínimo, em nossa realidade há muita indefinição acerca de determinados assuntos. “Entre os americanos, o cerne do debate não foi a eventual suspensão da alimentação e, sim, a interrupção do tratamento de alguém que não tinha deixado por escrito seus desejos em relação à própria morte” explicou Gabriel Oselka, coordenador do Centro de Bioética do Cremesp.

Isto é, cumprindo a tradição médica norte-americana de valorização absoluta da autonomia do paciente, se existisse a certeza de que a paciente preferiria que nenhum recurso extra fosse empregado para a manutenção de sua vida, isso seria respeitado. Leia-se: se esta tivesse deixado sua vontade documentada ou se seus pais, Bob e Mary Schindler, não contestassem as afirmações do genro, Michael, em relação ao que realmente desejaria.

Naquele contexto – ao contrário do que acontece no Brasil, onde está distante um consenso entre especialistas sobre o que tubos alimentares realmente são,  tratamentos ou cuidados básicos? – o ato de interromper ou não a alimentação artificial poderia ser visto como irrelevante.

“Se você não quer receber sangue, respiração artificial, diálise renal, insulina, comida, bebida ou qualquer tratamento médico, pode recusar isso. E mesmo uma pessoa em coma permanente ou estado vegetativo pode exercer os mesmos direitos, se deixou algo escrito ou informou a decisão a um familiar próximo”, ressaltou recentemente o professor Arthur Caplan, coordenador do Centro de Bioética da Universidade da Pensilvânia, durante entrevista concedida ao Centro de Bioética do Cremesp.

Eutanásia por omissão?
Um ano atrás, quando se intensificaram as brigas judiciais entre Michael Schiavo e os Schindler, o casal recebeu apoios de peso contra a retirada das sondas da filha, como o vindo do governador da Flórida, Jeb Bush (cuja posição relativa ao significado de uma “cultura da vida” é compartilhada pelo irmão, George W, presidente dos EUA), além do promovido pelo papa João Paulo II, falecido há poucos dias. 

Apesar de adotar uma linha diferenciada em comparação a seus antecessores a respeito da atenção em final de vida – a Santa Sé já declarou considerar desnecessário prolongar o sofrimento, de maneira dolorosa e inútil, sem que haja resposta ao tratamento – João Paulo II afirmou enfaticamente que continuar alimentando e hidratando artificialmente pessoas em estado vegetativo persistente era uma “obrigação moral” ainda que tal condição perdurasse por anos a fio.

“Pacientes em coma permanente continuam sendo ‘seres humanos’, não se transformando ‘em vegetais ou animais’", garantiu o Papa. Por este motivo, “alimentos fornecidos por sondas deveriam ser considerados como refeições como quaisquer outras”, constituindo-se em direito inalienável dos seres humanos. “Participantes em qualquer nível da retirada de sondas estão cometendo eutanásia por omissão”, insistiu.

Aqui, cabe um parêntese: enganam-se os que pensam que, no país dos tribunais, a opinião da Igreja seria relevada a um segundo plano. Numa das ultimas apelações do casal Schindler pela reinserção das sondas na filha, seu advogado, David Gibbs, alicerçou-se justamente nos argumentos de João Paulo II, ressaltando que os princípios religiosos da paciente haviam sido infringidos, já que, como católica, teria motivos para seguir a orientação de seu líder. 

“Estamos agora em uma posição em que a Corte determina desobediência à igreja de uma pessoa, arriscando sua alma eterna”, reforçou.

Do not resuscitate
Discordou em gênero, número e grau da tese Arthur Caplan que, em artigo intitulado Do Not Resuscitate divulgado pelo site da Universidade da Filadélfia (philly.com), classificou a postura do pontífice e seus seguidores como “curiosa”, por contrariar como a medicina vem sendo praticada há mais de uma década nos EUA.

Segundo Caplan, polêmicas direcionadas ao tema iniciaram-se em 1990, em virtude do caso Nancy Cruzan, jovem que, após acidente de carro, ficou em estado de coma vegetativo. Respirava sozinha, mas necessitava de sondas para alimentar-se. “A Suprema Corte considerou legal interromper a comida e a bebida em situações como essa, desde que a atitude coincida com o expressado pelo paciente” disse, reiterando “de acordo com a Corte, alimentação e hidratação via sondas constituem-se claramente em tratamentos médicos”.

Porém, se tal ponto de vista é  tão “claro” entre os norte-americanos, por que milhares de cidadãos foram às ruas para pedir a manutenção das sondas em Terri Schiavo –  incluindo um militante que, mais exaltado, tentou invadir o hóspice onde ela estava internada, para dar-lhe um copo de água? 

A resposta pode ser extraída da entrevista de Caplan ao Centro de Bioética do Cremesp. “Na cabeça do governador (da Flórida) e de muitos americanos persistem dúvidas referentes à ética e aos critérios médicos empregados para a remoção de um tubo alimentar. Isso demonstra que a Medicina e a Bioética não vêm fazendo um bom trabalho de educação pública, esclarecendo que nutrição artificial e hidratação constituem-se em tecnologias passíveis de interrupção, se a intenção for prevenir o sofrimento do paciente”.

Para Caplan “é prudente, então, organizar uma conferência internacional abordando o tema”.

Veja a entrevista completa de Arthur Caplan clicando aqui.
Confira outras notas sobre o assunto publicadas pelo Centro de Bioética:
Papa deixa eticistas pasmos (05-04-2004)
"Não" ao sofrimento (10-11-2004)


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