06-10-2005

Um impulso para a cidadania ativa

Para a filósofa espanhola o conceito de cidadania exige o “empoderamento” dos que são iguais enquanto cidadãos

A professora Adela Cortina, catedrática em Ética e Filosofia Política na Universidade de Valência, Espanha, é uma figura bem simpática: prova disso é que parecia jamais perder a esportiva e o bom-humor quando literalmente cercada por leitores de sua – extensa – bibliografia, como acontecia a cada intervalo do VI Congresso Brasileiro de Bioética, realizado entre 31 de agosto e 03 de setembro de 2005 em Foz do Iguaçu, Paraná.

Pacientemente, autografava e fazia dedicatórias carinhosas aos fãs de seus livros, quase sempre voltados à justiça social – aliás, tema abordado na conferência que proferiu no evento, “Bioética: um impulso para a cidadania ativa”.

Na ocasião, destacou que o conceito de cidadania é revolucionário, na medida em que exige o “empoderamento” dos que são iguais enquanto cidadãos, para que levem adiante seus planos vitais de modo autônomo e solidário. “E a Bioética é um impulso potente para a geração de uma cidadania ativa em nível local e global”, refletiu.

Hoje com 58 anos, a eterna militante dos direitos humanos iniciou sua carreira no âmbito da metafísica, até se interessar pelo estudo da fundamentação ética – em especial, dos fundamentos da ética comunicativa criada a partir do filósofo alemão Jürgen Habermas – realizado na Alemanha. Neste período, se deu conta da importância da aplicação do aprendizado às distintas esferas da vida social.

“Quero dizer, na Bioética, e nos meios de comunicação” explicou, em entrevista exclusiva concedida ao site do Centro de Bioética do Cremesp. Durante a conversa Adela abordou outros assuntos delicados, como eutanásia, cuidados paliativos e aborto. Veja, a seguir, a íntegra:


Centro de Bioética – A Bioética é prerrogativa exclusiva dos profissionais e estudiosos da área da Saúde?

Adela Cortina – A Bioética destina-se a dois grandes âmbitos. O chamado de macrobioética, dedicado às causas como a ética ecológica, aos problemas do meio ambiente e da natureza, tema central deste Congresso, e o voltado a microbioética, referente à ética da assistência sanitária. Fora estes há ainda a ética das biotecnologias.

Creio que a ética da assistência sanitária é fundamentalmente de interesse de profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros, psicólogos etc, além de outras pessoas que trabalham em hospitais, clínicas e consultórios e, lógico, dos doentes, diretamente afetados pelas decisões médicas.

A profissão médica é a que proporciona à humanidade um bem importantíssimo, talvez, o maior que temos. Por isso, aproveito a oportunidade para pedir aos médicos e também aos demais profissionais de saúde que sejam excelentes. Que não cumpram apenas as normas, a lei ou o mais elementar de seu trabalho. Por favor, trabalhem pela excelência!

Porque seu compromisso último, como sabem, não é com os hospitais, e sim, com as pessoas. Posso assegurar-lhes de que, quando um doente e sua família procuram um hospital, rapidamente percebem quem é o médico ou enfermeiro com verdadeira vocação e preocupado com seus pacientes. Este é o grande diferencial.

Cbio – Na conferência proferida aqui no congresso, Bioética: um impulso para a cidadania ativa, a senhora defendeu uma “Bioética de intervenção”. O que significa?

Adela – Concordo com o professor Volnei (Garrafa, então presidente da Sociedade Brasileira de Bioética/SBB) em seu entendimento de Ética e Bioética como instrumentos para “empoderar” as pessoas, permitindo que possam desenvolver e melhorar a própria vida.

Isso porque, muitas vezes, se entende o ético como auxiliar os “necessitados”, dar-lhes instrumentos, mercadorias, comida...

Não! O importante é colaborar para que alcancem a possibilidade de obterem as coisas por si mesmos. A questão não é prover os indivíduos de coisas e, sim, de capacidades. O importante não é transpassar-lhes os objetos e, sim, os conhecimentos.

E não estou falando somente de pobres e miseráveis. Por exemplo, em comitês de Ética e Bioética, o essencial é habilitar os membros ao deliberar, ao refletir diante dos assuntos e dos problemas. Não adianta darmos eles quilos de livros, muita bibliografia, se não os ajudarmos a tomarem decisões.

Cbio – Mas não há alguém tão vulnerável, a ponto de não conseguir movimentar-se para melhorar?

Adela – Claro!

Por exemplo, a Medicina se relaciona efetivamente aos seres vulneráveis. Doentes são especialmente vulneráveis. Temos, entretanto, que preparar as distintas comunidades e grupos, com a meta de torná-los hábeis a defender-se da vulnerabilidade.

O que queremos?

Uma comunidade apta a buscar assistência sanitária; a questionar a respeito de seus direitos e dificuldades, para ter saúde. Muito mais auto-suficiente do que aquela que precisa que outros lhe mande remédios, comida e ajuda.

Cbio – Ruth Macklin (professora de Bioética do Albert Einstein College of Medicine, em Nova Iorque) se diz indignada quando as mulheres são classificadas como “vulneráveis”. Para ela, o fato de serem mulheres, em si, não faz delas desprotegidas...

Adela – Em determinadas sociedades e realidades, creio que as mulheres realmente sejam mais desprotegidas. Em outras, não.

Nos países desenvolvidos, como Suécia, Noruega, elas estão no mesmo nível que os homens e cada vez mais têm seus direitos reconhecidos. Neste momento, na sociedade espanhola, não podemos dizer que as moças demonstrem maior vulnerabilidade do que os rapazes: ambos carecem de igual proteção.

Por outro lado, a situação é bastante diferente em uma nação subdesenvolvida ou em vias de desenvolvimento. No Irã, onde objetivamente as mulheres não contam com o reconhecimento de seus direitos, os próprios costumes sociais levam-nas à inferioridade de condições e, portanto, à vulnerabilidade.

Não por não possuírem capacidades, apenas por não poderem executar tais capacidades.

Em relação ao que dizia a professora Macklin, concordo que, em princípio, as mulheres não podem ser vistas como vulneráveis por serem mulheres. Em comparação aos homens, estão mais capacitadas em diversos aspectos, como quanto ao questionamento da vida cotidiana.

Veja, por exemplo, a famosa idéia de se fazer um banco dos pobres, no qual os empréstimos seriam dados às mulheres, não aos homens.

A idéia é de que se faça o empréstimo aos mais confiáveis, certo? Então, segundo a concepção do tal banco, a esposa saberia usar melhor o empréstimo, transformando-o em bem para ela e sua família e iria devolver o dinheiro, por ser mais fiel do que marido.

Para mim, essa história demonstra que nós, mulheres, estamos tão – ou mais – preparadas para questionar os recursos sanitários quanto os homens. Não podemos pensar em nós mesmas como umas pobres que não sabem fazer nada.

Cbio – A certa altura de sua conferência, a senhora chamou de “malditos” os temas da Bioética. Por que?

Adela – São malditos porque, poucas vezes, reflete-se a respeito do problema apresentado em si.

Explicando: o aborto, por exemplo, é um tema vinculado a diversos conflitos. Existem posições fundamentalistas favoráveis ao “sim” e posições fundamentalistas, ao “não”. Algumas de cunho religioso, outras não. Algumas políticas, outras não.

Mas, curiosamente, é comum tomarem-se decisões sem levar em conta o cerne da questão: o aborto.

No meu país, a Espanha, atuam dois partidos políticos. Se alguém é favorável ao aborto, imagina-se que defenda o partido socialista. Se for contrário, o partido popular.

Pergunto: por que um partido inteiro pensaria do mesmo jeito? Não pode ser! (diz, indignada)

E por que todos os membros de uma religião têm, necessariamente, que ver algo de forma idêntica? Dentro das distintas religiões existe pluralidade. No mundo católico, há os que concordam com o aborto em determinadas condições, e em outras, não. Aceitam a eutanásia em certos casos e, em outros, não.

Porém, socialmente fazemos etiquetas que determinam: aquele sujeito que diz “sim” a eutanásia é progressista. O que pensa “não” é um conservador e um reacionário.

Não faz o menor sentido. Tenho amigos deveras progressistas que consideram a eutanásia um problema ético. Outros, conservadores, que a acham defensável.

Cbio – E qual é a sua opinião?

Adela – Minha opinião? Acredito que, neste tema, existem menos conflitos sociais do que parece.

Porque praticamente todos os setores sociais concordam que é necessário fomentar os cuidados paliativos; tratar de reduzir a dor; de acompanhar o paciente até seus últimos momentos; de evitar encaminhamentos terapêuticos desnecessários, operando, intervindo...

Enfim, não utilizar meios extraordinários para manter aquela vida, impingindo algo a mais do que alimentação e hidratação.

O único ponto gerador de discrepâncias é se, nos instantes derradeiros, o doente poderia receber uma injeção para ajudá-lo a morrer. Porém, quantas vezes enfrentamos esse extremo? Na maioria, não é o que ocorre.

Então, a meu ver, o problema da eutanásia não é absolutamente conflituoso. Quando dizemos “minha mãe já está muito doente, outra operação só serviria para diminuir sua dignidade e qualidade de vida; aumentar seu sofrimento e, pior, sem nenhuma garantia de que vá viver melhor”, perceberemos que o ideal é levá-la para casa e que morra em paz, com sua família.

Pode-se discordar?

Cbio – É difícil para os ocidentais admitirem o morrer em casa...

Adela – Neste ponto há algo importantíssimo para nós, que estudamos Bioética: é muito difícil “com morrer” se não se existe um “conviver”. Para garantir o “morrer em paz” é preciso que aquele ser conte com um grupo de pessoas com que tenha convivido.

Contar com um suficiente grupo social para que, na hora da morte, possa estar acompanhado. Conseguiremos, assim, o nosso “com morrer” porque já escrevemos em nossa história um conviver.

E uma das tragédias do nosso tempo é o fato de as pessoas viverem sós e, ao final, morrerem sós.

É preciso cuidado, porque senão a morte em hospital será 100% solitária. Com uma intervenção mais, todos os aparatos... Sem, contudo, a presença da própria família, o que é terrível! Todo mundo morre metido numa UTI, passando por todas as intervenções possíveis e com desconhecidos. Por Dios!

Tal cultura precisa ser revista, voltar ao passado. Que possamos olhar aos nossos entes queridos e concluir “não há mais nada”...

Sim, tudo deve ser feito, usados todos os recursos dos quais os hospitais dispõem, para manter uma vida que possa carregar uma qualidade de vida.

Mas chega um momento em que todos os que nascem morrem! Chega o momento em que o pessoal da saúde precisa reconhecer: perdeu.

Humanamente é impossível manter aquela vida com qualidade. Que levemos nosso doente para casa e que morra tranqüilamente em paz, com os familiares, os filhos, os parentes.

É o mais humano, não? Isso é o que me parece morrer humanamente, não?

Algumas conclusões de Adela

- "A ética serve para fazer parte das pessoas, o que não é um mau projeto. Para que tenham ideais de justiça e vida. É isso: a ética serve para que sejamos mais justos e felizes"

- "Um dos grandes desafios do século XXI é conseguir que os que tenham o poder tenham também a ética. Parte da salvação da humanidade está justamente que a ética chegue ao poder"

- "Quando existe uma forma de vida em que a felicidade é ir às compras e essas compras se tornam um fim em si mesmas, sem dar-se conta de quem está ao lado morrendo de fome, percebemos que o consumismo está expulsando a solidariedade"

- "Os políticos deveriam perceber que deveriam ser responsáveis com as coisas que fazem. E os cidadãos, que deveriam ser mais participativos"

- "A globalização tem nos levado a temas que, em curto prazo, podem ser terríveis e fazer com que haja maior distância entre os países ricos e os países em desenvolvimento. A brecha é cada vez maior entre os que não interessam a ninguém e aqueles que se distraem consumindo como loucos"

- "Se uma empresa gastou uma enorme quantidade de dinheiro para patentear um gene, quer comercializá-lo imediatamente. Isso aumenta a responsabilidade dos pesquisadores, muito mais preparados do que as empresas para atenderem moratórias e esgotarem todos os prazos, até ver os resultados".

* Adela Cortina é professora de Ética e Filosofia Política na Universidade de Valência. É fundadora e diretora da Fundación ÉTNOR, para a Ética em Negocios e Organizações, voltada à difusão e desenvolvimento da Ética Econômica.

Autora de dezenas de livros como Por uma ética Del consumo: la ciudadanía Del consumidor em um mundo global (2002) e Ciudadanos Del mundo: hacia uma teoria de la ciudadanía (1997) e colaboradora de outros, como construir confianza: ética de la empresa em la sociedad de la información y lãs comunicaciones, além de diversos artigos.

 


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