14-11-2002

Os médicos devem aprender a ouvir o próprio coração

Escocês aconselha: "Os médicos devem aprender a ouvir o próprio coração"


O professor escocês Alastair Campbell, da Universidade de Bristol, Inglaterra, literalmente abriu o caminho para a  realização no Brasil do VI Congresso Mundial de Bioética: em 1998, o então presidente da International Association of Bioethics (IAB) esteve no país durante o II Congresso Brasileiro de Bioética, mostrando-se impressionado com a atuação do grupo de bioeticistas presentes e com a cordialidade do povo em geral. Assim que voltou para casa, publicou editorial no jornal da IAB, endossando o pedido brasileiro  para sediar o grande evento, em 2002.

Idéia concretizada, foi o responsável por duas palestras durante o VI Congresso: uma, detalhando suas experiências com as chamadas Populações vulneráveis e outra, abordando Religião e violência. Durante a primeira, conseguiu fazer com que os presentes no Americel Hall, na Academia de Tênis, em Brasília, parassem para refletir sobre sua visão relativa a "vulnerabilidade".  Sob seu ponto de vista, a  vulnerabilidade é  capaz de tornar as  "pessoas mais abertas e belas", pois traduz o sentido da palavra humanidade.

Especialmente aos médicos, destacou trechos de um poema protagonizado por um cirurgião, que deveria aprender a "sujar as mãos com o sangue de seu paciente", pois só assim "conseguiria 'ouvir' e não sentir medo do sofrimento do semelhante".

Simpático e com jeito carinhoso, depois desta palestra o professor Campbell concedeu entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp. Entre outros assuntos, explicou sua concepção de "paciente virtuoso" - tema de levantamento que coordenou em vários centros de saúde em Londres.

Centro de Bioética: Antes mesmo do Congresso realizado em Londres, o senhor já era favorável à indicação do Brasil para sediar o próximo encontro. Como chegou a essa conclusão?

Alastair Campbell - Considerei que o Brasil seria uma opção muito boa, por dois motivos. Primeiro, porque já existia aqui uma Sociedade de Bioética forte, e a IAB queria ter a certeza de que escolheria um lugar onde os temas bioéticos já estivessem bem difundidos. Além disso, gostaríamos de agregar representantes de países variados do continente Sul Americano, trocando experiências e conhecimentos com amigos de fora dos Estados Unidos e da Europa. Acertamos: a organização realizou um trabalho maravilhoso!

Segundo - e principalmente -,  porque o Brasil enfrenta extremos em termos de saúde, diferenças reais entre pobres e ricos. Isso concordaria perfeitamente com um congresso baseado na Justiça, na Injustiça, no Poder e na falta dele. Diga-se de passagem, a esperança e o desejo de justiça vêm sendo vivenciados intensamente por alguns países da América Latina, em particular pelo Brasil, onde aconteceu uma estranha coincidência: justo agora foi eleito um presidente operário, absolutamente de esquerda.
   
CB - No Congresso, muito se falou sobre a necessidade de uma Bioética intervencionista, não só de reflexão. É também o seu anseio?

Campbell - Concordo com o professor Garrafa (Volnei Garrafa, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética/SBB) quando defende que a Bioética deve relacionar-se a aspectos mais amplos, como os econômicos e políticos.

Mas não compartilho completamente com todos ângulos envolvidos em uma Bioética de intervenção. Meu problema é compreender, no sentido prático, o que quer dizer intervir, adotar ações. Conseguiremos explicar aos indivíduos de diversos países e provenientes de variadas culturas o que significa agir, se isso, aparentemente, não é claro nem para nós, bioeticistas? Não é um risco propormos algo que, em termos gerais, não dominamos?

Lógico que eu não sustento a idéia de uma Bioética apenas reflexiva. No cenário clínico, é certo desejarmos mudanças em termos, por exemplo, de ética em pesquisa. Isso não é apenas reflexão: essas mudanças já vêm sendo implementadas. Talvez, pudéssemos começar a interferir, encorajando modificações "macro".

CB - Modificações "macro"?
Campbell - Por exemplo, em termos de saúde pública. Poderíamos incentivar o desenvolvimento de um maior número de organizações realmente empenhadas em trabalhar com a comunidade, preparadas para perceber as necessidades específicas dos assistidos. Isso é macro.
Precisamos ser bastante críticos no tocante a outros aspectos macro, relativos ao pequeno acesso universal à Saúde de algumas populações ou a condições ambientais inadequadas à sobrevivência.

Quanto a outro significado da palavra "intervenção", já não tenho tanta certeza do que se trata...

CB - Em sua palestra Os vulneráveis: sobre a realidade e a esperança, o senhor abordou questões bem próximas à realidade dos médicos, em especial, falando da compaixão que deveriam ter para com seus pacientes. Chegou a citar uma poesia, incentivando o cirurgião a "sangrar" e a sentir a dor do operado...

Campbell - Veja, aí, de novo, aparece a questão do poder. Na minha opinião, a relação médico/paciente poderia ser bastante simplificada, se fosse apoiada em dois grupos: de um lado, estariam as pessoas doentes e que precisam de ajuda. E, de outro, ficariam aqueles médicos que se julgassem capazes de perceber o quanto é precioso ajudar.

Na minha fala, mencionei certos profissionais que agem como Deuses, invulneráveis. Se nós, médicos, admitíssemos que as vezes precisamos de ajuda, conseguiríamos responder às necessidades de outras pessoas. Simplesmente porque nos veríamos através delas.

É difícil para os médicos aliar esses sentimentos à prática profissional. Somos treinados  para direcionar nossa atenção ao diagnóstico científico das doenças. Um cirurgião, por exemplo, é ensinado basicamente a fazer incisões e a estancar sangramentos. Pontos, sem dúvidas, muito importantes. Mas a minha argumentação é que pode existir um balanço: você não deve ficar envolvido demais, nem distante demais.

O poema fala de um "cirurgião que sangra, quando seu paciente está sangrando". Óbvio que se trata de uma imagem, pois no  contexto real, em tempos de HIV, a atitude seria potencialmente perigosa (risos). Para sermos bons profissionais, precisamos dominar nossos sentimentos, mas não devemos nos tornar cegos a outras questões. É possível olhar para o paciente como muito mais do que alguma coisa a ser operada. 

CB - A intenção, então, é passar a idéia de que não existe apenas uma pessoa fraca e uma forte nesta relação? 

Campbell - Exatamente! Desde os primeiros anos, na Faculdade de Medicina, em Bristol, aconselhamos aos nossos alunos a nunca deixarem seus sentimentos para trás. Em dissecação de cadáveres, nas primeiras aulas de anatomia, nos preocupamos em questionar se estão preparados, assustados... Dizemos "se você passar mal, isso não é ruim, é humano. Em vez de dizer 'não tenho sentimentos' diga, 'tenho sentimentos'. O ideal é que você possa reconhecê-los e, então, que peça ajuda".

Além da minha universidade, a disciplina Ética é ensinada desde o primeiro semestre em várias escolas médicas inglesas e escocesas. A cada ano, abordamos enfoques diferentes, quando nos confrontamos com novas situações. Por exemplo, no quarto ano estudamos Obstetrícia. Então, a partir daí debatemos dilemas éticos intrínsecos ao aborto ou à reprodução assistida. 

CB - Os fundamentos da Bioética (Beneficência, Não Maleficência, Justiça e Autonomia), na sua opinião, estão inseridos no contexto da profissão médica, em nível mundial?

Campbell - Espero que sim! Para dizer a verdade, acredito que os profissionais, hoje, vêm aprendendo mais a respeito de ética e não apenas de técnica. Entretanto devemos ser bastante cuidadosos ao adotar uma forma particular de entendimento com relação à Bioética, evitando empregar moldes europeus, americanos ou quaisquer que sejam.

CB - Quem é o "paciente virtuoso", a respeito do qual o senhor esteve falando em sua palestra?

Campbell - Darei um exemplo concreto de uma 'paciente virtuosa' que conheci. Artista plástica, era portadora de um grau seríssimo de diabetes, mas sonhava em ter um bebê. Os médicos tentavam dissuadi-la, pelos riscos de morte. Depois de muito refletir se era aquilo que realmente desejava, ela decidiu desistir da maternidade, modificando suas expectativas. Direcionou sua energia criadora à criatividade. Definiu: "Meus quadros vão ser meus filhos".

A moça orientou-se por sua ética própria. Tirou poder daquilo que realmente teria condições de fazer. Ponderou de forma ampla, não apenas pensando em um problema específico, mas sim, avaliando qual seria a melhor forma de viver a vida que se apresentava.  Enxergou as dimensões da realidade Eu não posso ser mãe e da esperança mas posso ser uma artista. Parou de lutar pelo que não poderia ter. E nós encontramos a paciente perfeita!

CB - O senhor fez parte de um comitê especial sobre clonagem, que orientou o governo inglês a permitir a manipulação de células-tronco embrionárias. Pessoalmente, é favorável a estas pesquisas?

Campbell - Minha opinião pessoal é idêntica à de lady Warnock (baronesa britânica, coordenadora do projeto para liberação das pesquisas com pré-embriões). Ou seja, acho que a manipulação não é moralmente condenável até 14 dias de "vida" do embrião. Não concordo com a tese de que o pré-embrião é uma "pessoa". A destruição dos embriões criados em laboratório, entretanto, é justificável somente em propostas realmente sérias e quando é comprovado ser a única forma de se promover a pesquisa.

CB - A respeito de doação de órgãos. O senhor é vice-presidente de uma comissão sobre o assunto, ligada ao Departamento de Saúde da Grã-Bretanha. Que tipo de dilemas estão embutidos atualmente na questão dos transplantes?

Campbell - Todo mundo está preocupado com as questões concernentes a doadores vivos. Como saber se as doações entre parentes são aceitáveis, por exemplo, quando a pessoa que precisa de um rim está inconsciente e impossibilitada de dizer "não"? 

Em segundo lugar, como disse Berlinguer (Giovanni, que falou sobre O mercado humano)  existem pressões para se iniciar uma espécie de  mercado voltado a vender órgãos. Há filósofos que consideram a venda válida, desde que o doador assim o deseje. Discordo totalmente.

O problema de venda de órgãos não é exclusivo dos países pobres. É ilegal, mas acontece em países do Primeiro Mundo. Alguns meses atrás, foi divulgado que dois médicos indianos comercializavam rins na Inglaterra. A fonte, lógico, era a Índia.

Outro dilema quanto a órgãos relaciona-se ao uso de tecidos com outros fins, que não sejam os de transplante. Em pesquisas médicas e assim por diante. Penso que vários debates deveriam ser realizados, lembrando, nessas rodas de discussão, as chances desses tecidos serem usados como meros produtos farmacêuticos, com o objetivo principal de ganhar dinheiro.

 Máximas do Professor Campbell

- A vulnerabilidade é bonita. Uma flor natural só é perfeita e bela porque tem a chance de conhecer a vida e a morte. A flor de plástico é impassível, invulnerável... Mas não é nada.

Precisamos acabar com a idéia de que "ser humano", significa ser "bem sucedido". Defendo que os "vulneráveis" precisam aprender a conviver com a sua situação própria e a encontrar, em si, o lugar onde habita seu equilíbrio e esperança.

- Trabalhei com grupos que chamei de "pacientes virtuosos", portadores de doenças dolorosas e  sem cura . Pacientes virtuosos são aqueles que aderem aos tratamentos, não se queixam. Percebem o bem em qualquer situação e conseguem se questionar "Se eu não posso ser curado, o que isso significa em termos morais?". Ou "como me sustentar como um ser moral, ainda que conviva com esse problema?"

- Nós, estudiosos da Bioética, precisamos ir a fundo em nós mesmos e descobrirmos o que é "sangrar". Há situações em que o cirurgião deve sujar suas mãos. Se não pudermos sentir a dor alheia, não teremos a noção do nosso dever como seres humanos.

- Os médicos devem aprender a ouvir o próprio coração

* Alastair Campbell é professor de Ética em Medicina na University of Bristol, Grã-Bretanha e diretor do Centre for Ethics in Medicine, na mesma faculdade. Preside o Welcome Trust's Standing Advisory Group on Ethics e é vice-presidente da Retained Organs Commission, do departamento de Saúde da Grã-Bretanha, sendo ainda membro do Medical Ethics Committee of the British Medical Association.
É um fundadores e ex-presidente da International Association of Bioethics (IAB) e do Ethics Committee of the Royal College of Obstetricians and Gynecologists, da Inglaterra. Fez parte do comitê responsável por orientar o Ministério da Saúde da Grã-Bretanha sobre os assuntos relacionados a clonagem. Autor e co-autor de vários livros, incluindo Health as Liberation (Pilgrim Press, 1995) and Medical Ethics, (Oxford University Press, 1997). 

Outras entrevistas aqui. 


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