As necessidades de saúde são mais amplas do que os recursos disponíveis – e isso atinge boa parte do mundo contemporâneo, inclusive, nações ricas e poderosas.
Partindo-se dessa realidade, identifica-se que escolhas têm de ser feitas: a isso se dá o nome de Alocação de Recursos em Saúde, reflexão vinda do início da década de 1970, demandada por série de fatores, como a urbanização crescente, mudanças de costumes, e incremento da incorporação tecnológica aos tratamentos, entre outros.
Toda e qualquer escolha em saúde parte de limites, critérios e parâmetros, com a meta de priorizar o que vai ser ofertado e a quem os cuidados serão oferecidos. Quanto mais explícitos forem os critérios, maior a probabilidade de que o “racionamento” seja aplicado de maneira “justa”.
Racionamento de serviços ou cuidados de saúde pode ser compreendido enquanto uma política implícita ou explícita, fundamentada pelo fato de que os custos são proibitivos para o sistema de saúde e a sociedade. O racionamento pode ser feito mediante a não incorporação de determinadas prestações de cuidados de saúde, por exemplo, reprodução assistida ou cirurgias estéticas.
Além dos âmbitos políticos, econômicos, culturais e legais, decisões neste campo envolvem a ideologia e os valores morais de uma determinada sociedade: o ato de racionar, por exemplo, pode corresponder a limitações gerais colocadas sobre a disponibilidade de certos tipos de cuidados de saúde, mas também abranger decisões específicas de tratamento a pacientes individuais.
Macroalocação e microalocação
Em nível institucional ou social amplo, a distribuição de cuidados de saúde é referida como macroalocação, que inclui a forma como um hospital financia seus gastos, bem como, a quantidade de recursos que um país dedica aos cuidados primários e preventivos, em comparação com a medicina curativa com o emprego de alta tecnologia.
Por outro lado, a microalocalização concentra-se nas decisões individuais sobre tratamentos. Apesar de partirem de critérios concretos, tais decisões costumam ser influenciadas, de maneira inconsciente, pelos “méritos” atribuídos a uma pessoa para receber certo tratamento, em detrimento de outra. Em palavras simples, isso significa que considerações não médicas podem estar envolvidas no processo de decisão.
Quem merece mais um atendimento de emergência prestado pelo único intensivista disponível no plantão? A grávida baleada ou o assaltante que tentou roubá-la, e foi atingido pela polícia? E se ambos estiverem em risco iminente de morte? figuram entre os tipos de dilema de prestadores de saúde em seu (solitário) dia de trabalho.
No Brasil, é possível argumentar que um racionamento não explícito é realizado pelo Congresso Nacional, Assembleias Estaduais e Câmaras Municipais, ao aprovarem os respectivos orçamentos para o setor saúde. No entanto a lei não permite promover um racionamento explícito de cuidados de saúde como acontece em outros países, discriminando, por exemplo, indivíduos ou grupos sociais por idade ou pela existência de estilos de vida não saudáveis, como aconteceu na Inglaterra nos anos 90 – o que colocaria em xeque o princípio de universalidade de acesso ao sistema público.
Mesmo nos países mais desenvolvidos, a necessidade de microlocalização persistirá (e provavelmente aumentará) por, pelo menos, três razões: primeira, muitas tecnologias emergentes são tão caras, que tornam proibitivo o custo de disponibilizá-las a todos que poderiam se beneficiar delas. Segunda, a escassez de alguns tratamentos (por exemplo, transplante de órgãos) não é simplesmente questão de financiamento, mas reflete a oferta limitada do próprio recurso. Terceira, o desenvolvimento tecnológico continuará a gerar benefícios a um número limitado de pacientes – os que podem pagar.
Critérios
Quais seriam os critérios éticos orientadores de uma boa e justa priorização de recursos referentes aos cuidados de saúde?
Uma das orientações éticas para se avaliar o que é justo é a dada pelo utilitarismo. As teorias utilitaristas defendem a necessidade de se avaliar os resultados das ações, proporcionando o maior bem-estar para o maior número possível de pessoas, ou seja, a maximização do bem-estar – considerando-se as dificuldades de se conceituar o que é "bem-estar".
Constam deste rol as medidas de prevenção de doenças aportadas pelas medidas de vacinação em massa. Porém, se as decisões se restringirem a bases utilitaristas, podem ser contrárias à aplicação de recursos em atividades custosas, mas que dão baixa cobertura populacional, tais como transplantes, hemodiálise, distribuição de medicamentos de alto custo, e mesmo de antirretrovirais para os HIV positivos.
Outra orientação ética para se identificar a “justiça” no âmbito sanitário direciona-se à equidade em saúde, atualmente mais entendida como aceitando, não a igualdade, mas sim a diferença entre as pessoas em suas condições sociais e sanitárias, tendo necessidades diferenciadas. Assim, uma ação guiada pela equidade deveria proporcionar a cada pessoa a satisfação de suas necessidades, que são diferenciadas: "a cada um conforme suas necessidades".
Referências
Encyclopedia of Bioethics 3rd edition.
Reflexão bioética sobre a priorização e o racionamento de cuidados de saúde: entre a utilidade social e a equidade, Paulo Antônio de Carvalho Fortes, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
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