O Ministério da Saúde acabou de revisar e lançar, como parte de suas ações educativas, a norma de "Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes", que traz como principal mudança a não exigência da apresentação do Boletim de Ocorrência (BO) Policial pelas vítimas de estupro para a realização de abortamento legal.
A nova Norma Técnica , embasada juridicamente no Código Penal Brasileiro, faz parte de uma estratégia para a distribuição de manuais técnicos e cartilhas para gestores de políticas públicas, profissionais de saúde e para a população em geral.
Além desta norma, o ministério acabou de revisar a a norma de "Atenção Humanizada ao Abortamento" busca qualificar o atendimento à saúde de mulheres que chegam aos serviços de saúde em processo de abortamento espontâneo ou inseguro.
Tais esforços compõem a recém-elaborada Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, que terá como base o documento "Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: uma prioridade de governo". A Política, que prevê ações voltadas ao planejamento familiar para o período de 2005 a 2007, voltada a garantir os direitos de homens e mulheres, adultos e adolescentes, em relação à saúde sexual e reprodutiva.
Veja a cartilha sobre Atenção Humanizada em Abortamento clicando aqui.
Mais detalhes no site do Ministério da Saúde.
Fonte: site do Ministério da Saúde
Confira, a seguir, alguns depoimentos sobre o assunto, prestados ao Centro de Bioética.
Gabriel Oselka, coordenador do Centro de Bioética do Cremesp
Essa situação se assemelha a tantas outras em que o médico deve tomar decisões a partir da manifestação expressa da vontade da mulher.
Neste caso, o que a legislação exige “casa” com prática comum entre os médicos que é a obtenção daquilo que poderíamos chamar de consentimento livre e esclarecido. Ou seja, este vai ser informado da história de estupro e obter o consentimento expresso para realizar o aborto legal.
De posse de um documento desse tipo – que inclui, entre outros pontos, que se a paciente estiver mentindo pode sofrer conseqüências legais – ao médico não caberia outras medidas que não as da área médica e, sim, implementar algo que concorda com a legislação e com nossa própria prática ética, que é garantir o respeito à autonomia da mulher.
Ao realizar o atendimento, o médico deve partir da presunção de veracidade da paciente. Às vezes, existem mecanismos para checar que se trata de uma mentira grosseira, por exemplo, ao verificar que a idade gestacional não é compatível com a época alegada de estupro. Porém, quando não houver condições de perceber e se o médico foi enganado, ninguém poderá caracterizar seu ato como infração jurídica ou ética.
E é bom lembrar: o médico não é obrigado a realizar o aborto se isso não estiver de acordo com os ditames da própria consciência.
Jorge Andalaft – presidente da Comissão Nacional de Violência Sexual e Interrupção de Gestação da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)
Parte-se da premissa equivocada de que as mulheres que solicitam abortamento legal são mentirosas. Na prática, vemos que aquelas que procuram os serviços de saúde são simples, pobres e que se sujeitam a fazer exames para provar que foram submetidas a um ato de violência. Não podem ser punidas pelo mesmo.
Na verdade, o aborto sem BO já é previsto pelo Código Penal, mas os hospitais que passaram a atender as vítimas de estupro internamente passaram a entender que o boletim poderia ser importante. Com o tempo, verificou-se que este era desnecessário para o atendimento em si. Servia para a defesa jurídica e a tranqüilidade das instituições e médicos, propiciando segurança como prova documental a constar do prontuário e na formulação de estatísticas. Com ele, a mulher também consegue garantir sua cidadania.
No entanto, o ato de denunciar o crime na delegacia não faz qualquer diferença ao atendimento, porque o BO não fornece ao médico a prova de que o estupro realmente aconteceu.
Possibilitar o abortamento legal sem BO é vital em determinados casos em que existam motivos que impeçam a vítima de fazer a queixa na delegacia – ou por medo do agressor, ou quando o agressor é da própria família; ou se a gestante é menor de idade... E então o que fazer? Não atender?
O que deixou os médicos mais inseguros foi o aparente confronto de opinião entre o Ministério da Saúde e o Judiciário, pois, ao que parece, o entendimento jurídico que vem sendo dado pela OAB e o STF dão uma nova função ao BO.
Osmar Ribeiro Colás – professor da Unifesp responsável pela coordenação dos Programas de Aborto legal em Violência Sexual da Secretaria Municipal da Saúde
Em 1989 montamos no Hospital do Jabaquara, o 1º Programa de Aborto Legal em Violência sexual da América Latina, voltado à vítima de violência sexual. Naquela época, sabíamos que o BO não era obrigatório, mas pensamos que seria o mais adequado para nos dar respaldo legal.
Depois, vários serviços foram se estruturando e pedindo BO. Com o passar do tempo percebemos que, na prática, ele não resolve nada. Primeiro, porque o fato de registrar a ocorrência não implica que a pessoa esteja falando a verdade. Por outro lado, existem situações em que o boletim não pode ser feito e que a mulher estuprada acaba perdendo um direito legalmente conquistado. Além disso, nenhum médico vai praticar o aborto legal sem BO sem contar com respaldo de equipe multidisciplinar e de seus colegas, pois são casos expostos em reuniões clínicas.
Suponhamos que a vítima de estupro seja uma menina de 12 anos, violentada pelo irmão de 16, débil mental. Se a mãe, responsável legal por ambos, procurar um serviço, é justo não conseguir abortamento legal para a filha, pelo fato de não querer fazer o BO? E se uma menina de 13 engravidou ao transar com o namoradinho de 15? Vai querer responsabilizá-lo penalmente, considerando-se que relações sexuais com crianças de 13 anos constituem-se legalmente em estupro?
Vale deixar claro: as mulheres nunca se recusam a fazer BO. Em todos esses anos de experiência, apenas uma paciente não quis e por causa de casos como o que eu citei.
Na verdade, ao indicar a não obrigatoriedade do BO em abortamento legal, o Ministério da Saúde não pretende dizer que as mulheres não devem fazer. A gente sempre apregoou que, sim, deve denunciar, já que a vítima está exercendo seu direito à cidadania. A liberação foi pensada, sim, no sentido de atender a determinadas situações especiais em que não houve a coragem ou possibilidade de passar por certos constrangimentos.
De qualquer forma, é importante termos estes espaços de reflexão: meninas que não querem BO por terem 12, 13 anos e não haverem sido estupradas não são protagonistas de um caso de polícia e, sim, de um problema social e educativo. Por outro lado, a violência pode não implicar em caráter criminal, como a promovida por deficientes mentais.
Jefferson Drezett, consultor do Ministério da Saúde para a elaboração da Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento
A discussão sobre a necessidade de BO nos abortamentos legais em decorrência de violência sexual iniciou-se com a norma técnica anterior, que recomendava a obtenção do documento para a realização do procedimento.
De lá para cá foram promovidos vários fóruns sobre violência sexual, com a participação de representantes da sociedade como Febrasgo; grupos de mulheres; conselhos de medicina; pessoal da área da saúde. Neles, houve uma pressão muito grande para que a orientação fosse mudada, visto que o Ministério e os serviços não contavam com o direito de querer algo que o próprio Código Penal não exigia: imprescindível mesmo era o consentimento da própria gestante.
A intenção do Ministério nunca foi criar/descriar leis, ir contra os costumes, cometer ilícitos, desqualificar ou excluir BO: acreditou que deveria cumprir a lei de acordo com o Código Penal do país. Continua estimulando a queixa, para que a vítima possa alcançar com facilidade os benefícios da justiça. Mas esclarece que não é obrigada a fazê-lo, nos casos excepcionais em que a recusa seja justificável.
Pela norma técnica, a mulher que passou por estupro não é estimulada a abortar. É orientada pela equipe sobre todas as possibilidades, inclusive, de levar a gestação em frente, inserindo a criança na família dela ou entrando num processo de doação, com o respaldo de nossos parceiros da Rede.
Criou-se, a partir de toda essa questão, um falso dilema: a grande maioria quer BO e já chega ao hospital documentada pois, de alguma forma, percebe sua importância na obtenção do acesso à justiça, à segurança e, no final das contas, de um procedimento realizado de maneira reta e adequada.
É no mínimo lamentável e imoral que uma cidadã brasileira seja tratada como uma mentirosa se não tiver comprovação de que foi estuprada. Abrir um BO é um ato de fé, demonstra que essa mulher está disposta a compartilhar a informação com a autoridade policial. Portanto, não podemos tornar isso obrigatório.
Veja também no site do Centro de Bioética:
19-10-2022
19-10-2022
21-02-2020
27-01-2020
23-11-2019
22-10-2019
09-10-2019
Esta página teve 178 acessos.