Dirceu Greco defende Declaração de Helsinque

Há vários anos, o – incansável – professor Dirceu Greco, titular do departamento de Clínica Médica e coordenador do serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina/Hospital das Clínicas da Universidade de Minas Gerais (UFMG) se empenha em salvaguardar os direitos dos chamados “sujeitos de pesquisa”.

Como infectologista, sua defesa inicial endereçou-se aos participantes de estudos com novas drogas e/ou vacinas, destinadas a conter a epidemia da Aids. Desde 1996, entretanto, o “leque” se abriu: tornou-se um dos mais ativos militantes contra os esforços norte-americanos para modificar (a seu bel-prazer) itens da Declaração de Helsinque – documento de princípios éticos da Associação Médica Mundial (WMA), que traz orientações a médicos e voluntários de pesquisas clínicas.

Neste sentido, sua grande preocupação atual diz respeito à intenção da – poderosa – Food and Drugs Administration (FDA) de ignorar solenemente a Declaração – abrindo caminho ao uso de placebo e, conseqüentemente, às disparidades entre voluntários nascidos em países ricos e pobres.

“É óbvio que se trata de um risco... Se uma entidade com o poder da FDA decidir que Helsinque não faz parte dos requisitos éticos, estes vão ser menos valorizados. É uma desmoralização!” lamentou Greco, durante entrevista concedida ao site do Centro de Bioética do Cremesp. “Infelizmente, somos caudatários em muitas decisões ‘deles’ e, por isso, precisamos nos esforçar para reverter o quadro”.

A conversa aconteceu logo após a participação do professor no simpósio Bioética e Conflito de Interesses, realizado em 11 de setembro de 2004 pelo Centro e Câmara Técnica Interdisciplinar de Bioética. Confira, a seguir, os principais pontos:

Centro de Bioética – Quantas alterações já aconteceram na Declaração de Helsinque? Sempre foram motivadas por razões econômicas?

Dirceu Greco – A Declaração foi estabelecida em 1964 pela Associação Médica Mundial (www.wma.net), como idéia de ser uma espécie de contraponto feito por médicos ao Código de Nuremberg, objetivando ditar as normas em relação a pesquisas envolvendo seres humanos. Foi modificada várias vezes: em 1975; 1979; 1989; 1996 e em 2000.

As pressões mais intensas para alteração em itens fundamentais começaram em 1997, principalmente por parte do Instituto Nacional de Saúde (NIH); da FDA norte-americana e da indústria farmacêutica daquele país.

O primeiro alvo foi o artigo 29 da Declaração, que determina que não se pode usar placebo em ensaios clínicos quando há medicamento cuja atividade já esteja estabelecida. Os americanos argumentam que não, que em lugares onde não é oferecido acesso a medicamento algum, o placebo pode ser usado.

Outro item contestado foi o 30: Helsinque estabelece que todas as pessoas envolvidas em ensaios clínicos contem com acesso aos melhores métodos de diagnóstico e terapêuticos, comprovados internacionalmente. Para os EUA, esta norma não é válida. Consideram que a pesquisa deve se adequar ao lugar. Ou seja, se vai a um país pobre, onde a população não tem acesso a nada ou a quase nada, este padrão deve ser o mesmo para os voluntários.

Lógico que nós, dos países em desenvolvimento, não concordamos. Entendemos que participantes de projeto de pesquisa têm os mesmos direitos, seja em pesquisa realizada nos países industrializados ou nos países em desenvolvimento.

Respondendo a sua pergunta: na minha opinião, a discussão realmente não é ética e, sim, econômica, além de pragmática. Não fosse pelo dinheiro, não estaria acontecendo.

Cbio – Pragmática?

Greco – O pesquisador pode pensar algo como: “não sou a palmatória do mundo. Se eu chego num lugar em que não há nada, não há a obrigação de intervir, pois meu papel é puramente científico”. Falácia! No momento em que você envolve pessoas num projeto de pesquisa, essas pessoas são iguais, se estiverem em Nova Iorque, em São Paulo, Namíbia ou Botsuana.

Cbio – Como tais propostas deletérias começaram a ser efetivamente percebidas pela comunidade científica?

Greco – O principal desencadeante foi um estudo publicado na New England Journal of Medicine (NEJM), que acompanhou grávidas soropositivas da África do Sul e Tailândia. Procurando encontrar um método para impedir a transmissão vertical do vírus da Aids, norte-americanos compararam o novo tratamento ao placebo, não ao já estabelecido.

O próprio NEJM trouxe um editorial (Angell, M. The ethics of clinical research in the third world. N Engl J Med 1997;337:847-849), fortemente contrário que, em resumo, dizia que estavam sendo repetidas as práticas não-éticas da Segunda Guerra Mundial. Isso trouxe grandes discussões. (*Em tempo: a autora do editorial, Marcia Angell, “deixou” seu cargo na revista,  algum tempo depois da polêmica).

E o que os representantes americanos fizeram? Em vez de voltarem a promover Helsinque, propuseram mudanças horríveis, que abriam completamente a possibilidade do uso do placebo, desde que o lugar não tivesse acesso a nada.

Felizmente, após uma ação intensa de ativistas, pesquisadores e associações médicas nacionais de países em desenvolvimento, a assembléia da WMA, realizada em Edimburgo no ano 2000, impediu as alterações.

Cbio – Assim, os direitos dos sujeitos de pesquisa ficaram assegurados?

Greco – Naquele momento, sim. Só que, evidentemente, nossa atitude veio de encontro a interesses fortíssimos, não só da indústria, mas da própria FDA norte-americana: em 2001, WMA aprovou uma nota de esclarecimento em relação ao placebo que, na verdade, facilitou seu uso em certas situações. (*Por exemplo, na avaliação de método para tratar uma afecção simples e/ou quando os voluntários não forem arriscados a qualquer dano sério ou irreversível).

Não satisfeitos, no ano passado, durante a assembléia geral anual da WMA,  que coincidentemente aconteceu em Helsinque, propuseram flexibilização ao parágrafo 30, sobre acesso. Traduzindo: se eu explicasse ao meu voluntário que havia a possibilidade de que ele não contasse com cuidados de saúde após o termino da pesquisa e ele aceitasse, isso poderia ser feito.

Nós do Brasil, Argentina, África do Sul e outros países dissemos que era um absurdo. Que era, mais uma vez, tratar pessoas de formas distintas, por haverem nascido em nações diferentes. Uma modificação dessas não interviria em países desenvolvidos porque lá, os indivíduos já contam com acesso.(Veja em Dismantling the Helsinki Declaration).

Cbio – No entanto, conforme o senhor lembrou em sua palestra, o pior ainda estaria por vir...

Greco – Dois meses atrás, o FDA mudou a “tática”: em sua página na Internet (Food and Drug Administration. Guidance for Industry: Acceptance of Foreign Clinical Studies. March 2001).
lançou a proposta de retirar a Declaração de Helsinque dos requisitos para registros de ensaios clínicos realizados fora dos Estados Unidos, substituindo-a pelo Good Clinical Practice (GCP), diretrizes estabelecidas por agências norte-americanas (incluindo a FDA), européia e japonesa associadas a indústrias farmacêuticas dessas três regiões, relativas a “boas práticas clínicas”.

O argumento deles é baseado em coisas sem o menor sentido, como a  intenção de melhorar a qualidade dos dados; que Helsinque pode mudar suas diretrizes éticas à revelia do que a FDA decidir... Cumpre acentuar que melhorar a qualidade dos dados é condição intrínseca para que qualquer projeto seja ético e isto está bem claro na Declaração de Helsinque.

Se uma entidade com o poder da FDA decidir que Helsinque não faz parte dos requisitos éticos, estes vão diminuir, mesmo. É uma desmoralização! É o mesmo que dizer “obrigado pela sua opinião, mas faremos o que quisermos”.

Até oito de setembro, último dia de contra-argumentar, várias entidades mundiais encaminharam cartas pedindo que, em vez de se retirar Helsinque da pauta, se acrescentassem as regras do GCP. Eles ainda não se manifestaram... o risco continua existindo, já que é o FDA quem registra e, infelizmente, somos caudatários deles em muitas decisões. (Para informações e/ou contestações, visite o site da FDA)

Cbio –  Saindo um pouquinho do enfoque de Helsinque. No Brasil, o voluntário de pesquisa continua sendo um vulnerável, mesmo com as diretrizes que existem para sua proteção, como a Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde?

Greco – É uma boa pergunta. Inicialmente, se nós considerarmos que “vulneráveis” somos todos nós como mortais, perceberemos que a vulnerabilidade atinge a qualquer um, indistintamente. A vulnerabilidade aqui usada é no sentido da pouca autonomia e desconhecimento de muitos dos direitos dos envolvidos como voluntários em projetos de pesquisa no Brasil.

Falando-se em medidas para amenizar a vulnerabilidade do sujeito de pesquisa é evidente que, em nosso país, existem duas fases: o antes e o depois da Resolução CNS 196/96. Houve uma melhora espetacular!

Entretanto, o risco continua, já que se trata de uma população pobre, num país rico. Vemos disparidades enormes de poder. Citando algumas, em relação àquele voluntário que vem nos procurar,  existem os poderes do médico; da pesquisa e da estrutura de ensino…

É possível constatar tamanha assimetria, que talvez não seja nem resolvível a curto ou médio prazos. Se eu pensar como militante, minha perspectiva é de que quando essas pessoas se tornarem cidadãs, como se espera, vá ser mais fácil mudar o foco da discussão.

Hoje, ocorre o seguinte: nós “de cima” estamos tentando proteger aqueles que estão lá embaixo. Se houver uma emancipação dos lá de baixo, se eles conseguirem dizer “não precisamos de proteção, temos direitos”, talvez consigamos diminuir as diferenças de poder e a vulnerabilidade exagerada desse contingente.

Atualmente, a maior parte dos voluntários é constituída por pacientes de serviços públicos, acostumados com imensas dificuldades de acesso. No momento em que é aberta a possibilidade de entrarem numa pesquisa, se sentem tão gratificados por receberem o melhor tratamento; contarem com um médico na hora em que quiserem – sabem até seu nome e celular! – terem tudo disponível em caso de emergência, que não verão nisso um direito, e sim, uma benesse.

O jeito seria encontrarmos nesse meio um intermediário que falasse a mesma língua do voluntário. Aí entra a participação da comunidade, das organizações não-governamentais e organizações de pacientes.

Cbio – Como o senhor afirmou em durante o Simpósio, hoje se vê  com freqüência a alocação de recursos das doenças que chama de “órfãs”, para as mais rentáveis. É um dos efeitos danosos da globalização? 

Greco –  Acho que sim. O Brasil passou a freqüentar várias estruturas, sem, no entanto, receber de volta os benefícios do envolvimento.

Virou um campo muito bom para pesquisa, por várias razões. É grande, agrega muito paciente, possui estrutura de saúde estabelecida nacionalmente, pesquisadores de nível internacional, centros de excelência, população cordata. E mais: é menos custoso pesquisar aqui.

Então, o que acontece com as grandes indústrias, as farmacêuticas, especificamente? Para onde vai o foco da pesquisa? Se vão gastar duzentos, trezentos milhões de dólares estudando um medicamento novo, procurarão algum para tratar hipercolesterolomia, hipertrigliceridemia, disfunção erétil, não para tratar uma doença de pobre, como malária.

Certamente pesquisarão obesidade, calvície e tudo aquilo considerado “vendável”, com a chance de se transformar em block buster, arrasa-quarteirão, na linguagem de marketing das indústrias. O exemplo mais típico é um dos medicamentos para diminuir os níveis de colesterol, que no ano passado vendeu quatro bilhões de dólares nos Estados Unidos.

Cbio – Pensando dessa forma, poderemos chegar à conclusão de que é errado o Brasil participar de pesquisas...

Greco – De forma alguma. Pesquisa é necessária. Pesquisa que envolve ser humano, completamente necessária. O Brasil participar, sem a menor dúvida, porque isso vai nos trazer melhora de qualidade, de atendimento e de estrutura de ensino.

Só que devemos imaginar um jeito para que todo mundo seja beneficiado pelos resultados.

Cabe ressaltar um ponto essencial:  já contamos com medicamentos disponíveis para a maior parte das doenças que precisamos tratar. O que não é disponível é o acesso.

E existem formas de modificar essa história. O Brasil é exemplo internacional no tratamento da Aids. Foi uma questão de política; de pressão da sociedade; de estrutura bem-feita do governo; centros de pesquisa bem-montados e corpo médico que apoiou todo o processo. 

Cbio – Qual é o principal problema inserido no conflito de interesses indústria farmacêutica/pesquisador e que prejuízo este é capaz de trazer ao sujeito de pesquisa?

Greco – Um problema muito importante é realmente a disparidade de poder entre as partes envolvidas. Quero dizer, o laboratório farmacêutico faz um projeto de pesquisa, no qual pode investir trezentos milhões de dólares num único produto! 

Essa quantidade de dinheiro gera um conflito enorme, porque é muito difícil que não seduza.... Eu poderia dizer que isso (o dinheiro) não vai mudar nada a capacidade de discernimento e decisão dos pesquisadores, mas isto freqüentemente não é a verdade.

A participação nos projetos, além de trazer aporte financeiro individual e institucional, pode melhorar a visibilidade acadêmica, com inclusão, mesmo que marginal, na publicação dos resultados em revistas de circulação internacional.

E se lhe telefonam oferecendo uma viagem para ir a um congresso, classe executiva, levando a esposa, por mais independente que a pessoa seja, quando pensar em um laboratório, vai lembrar daquele. Com o carinho de “puxa, nem me pediram nada em troca”!

Outras opiniões do professor Greco

 Vale a pena esclarecer uma pequena confusão: o Brasil faz pouca pesquisa clínica com medicamento de indústria farmacêutica. O que realizamos são ensaios, isto é, na maioria das vezes, pesquisas originárias de fora, que nós reproduzimos.

 Então, por que não trazer mais pesquisas para cá ou até incentivar que as estruturas universitárias façam mais projetos, desde que controlados e éticos?

 A presença da indústria farmacêutica é desejável e pode ser bem utilizada. O que falta é um efetivo controle.

 A indústria já discute ética, ao contrário do que fazia antes. Usam isso até como “marketing”. Tipo, “eu sou ético, o outro é que não é”.

 Internacionalmente, nosso papel é colocar algo o mais claro possível para a comunidade: “veja mais uma vez o excepcionalismo, a arrogância norte-americana” (sobre a retirada de Helsinque dos requisitos para registros de pesquisas clínicas).

 Todo mundo concorda que a Declaração de Helsinque é uma maneira mundialmente aceita de proteção ao voluntário. Se for ignorada, abriremos ao que Deus quiser.


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