O catedrático Rui Nunes, diretor do Departamento de Ciências Sociais e Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e presidente da Associação Portuguesa de Bioética (APB) admite: entre seus temas mais “caros” figuram as Diretivas Antecipadas de Vontade – ou Testamento Vital, determinações escritas por alguém consciente, em relação ao que gostaria na fase final de vida, se não puder mais se expressar.
Tanto que, em 2006, a APB, sob sua égide, propôs ao governo que as Diretivas se tornassem lei, como ocorreu em 2012 após um intenso debate nacional, quando a Assembléia da República aprovou o texto por unanimidade. Não é de se estranhar, então, que o assunto fosse destacado em conferência sobre Bioética Global, proferida por Nunes em abril, durante plenária temática no Cremesp: “Concretamente Portugal demonstrou um avanço civilizacional. Que é um país formado por cidadãos capazes de fazer escolhas refletidas e responsáveis”, comemorou.
Ainda no assunto, esclareceu item sempre controverso: a possibilidade de mudança de ideia por parte de quem escreveu as Diretivas. “O cumprimento do Testamento Vital exige incapacidade do doente. É claro que a vontade de uma pessoa lúcida sempre prevalecerá”, explicou.
Esses e outros pontos de vista destacados pelo professor Nunes – como os “valores centrais” da Bioética e os prejuízos trazidos pela “justiça relativa”, perante recursos escassos em saúde – foram repercutidos em entrevista exclusiva concedida ao Centro de Bioética, logo após o encontro.
Confira!
Por Concília Ortona
Rui Nunes
Centro de Bioética – Por que o senhor diz que a Bioética é “filha da democracia e do pluralismo”?
Rui Nunes – Porque os valores centrais da Bioética correspondem à dignidade da pessoa; aos direitos humanos; ao respeito e à tolerância, ou seja, aqueles presentes nas democracias pluralistas, onde, efetivamente, se aceita como “marca genética”’ a ausência de uma interpretação única em relação ao bem comum e ao bem individual: há muitas visões diferentes.
É muito mais do que um modelo bioético: é um modelo de convivência social, possível apenas sociedades democráticas e plurais.
Plurais nas idéias e nas convicções.
Cbio – A Bioética não existe em lugares onde não haja uma “democracia absoluta”?
RN – A Bioética verdadeiramente dita não. É difícil que se respeitem valores assim, digamos, em lugares em que as mulheres são maltratadas e praticamente não têm direitos, como em alguns países islâmicos.
Isso não quer dizer que não haja responsabilidade, por exemplo, dos médicos, de levar os valores da Bioética a pontos do planeta onde não haja democracia, possibilitando assim que amanhã se transformem em democracias plurais.
Ou seja, a Bioética, como um esforço global em favor dos direitos humanos, também pode ter o efeito de levar seus ideais a culturas e civilizações que tradicionalmente estão arredadas disso.
Trata-se da Bioética global que mais cedo ou mais tarde chegará a esses povos e desafiará civilizações até então hermeticamente fechadas e blindadas a permitir a entrada de valores plurais e da dignidade da pessoa.
Cbio – Durante anos o senhor se empenhou pela aprovação da lei das Diretivas Antecipadas de Vontade, em Portugal. O resultado foi mais simbólico, no sentido de aumentar a auto-estima da população, ao se envolver na discussão de temas éticos tão controversos, ou é importante em si mesmo, como documento de intenção de vontade?
RN – As duas coisas.
Simbolicamente, por um lado, foi muito importante, porque impulsionou a população em direção às discussões de temas como dignidade, consentimento informado, autonomia com senso de responsabilidade, que já estavam na consciência geral, mas aumentaram de dimensão ao se falar em testamento vital. Ajudou muito o grande apoio, divulgação e esclarecimento pelos meios de comunicação social.
Por outro, muitos portugueses já aderiram ao testamento vital. Não tenho dúvidas de que amanhã serão muitíssimos mais. Não há nenhuma pressa: mais importante do que levar à frente Diretivas Antecipadas é abrir a possibilidade de escolha às pessoas.
Cbio – Os desejos presentes nas diretivas antecipadas de vontade são respeitados em Portugal?
RN – São! Não há dúvida, por estarem de acordo com os valores centrais da nossa sociedade, e porque a medicina e a ética médica perceberam que se trata do caminho certo.
Nesse sentido, foi fundamental a atitude séria e assertiva categoria médica. Os médicos portugueses decidiram apoiar o testamento vital ao perceberem que não atenta em nada contra a sua dignidade profissional: pelo contrário, consegue até alavancá-la.
Há momentos em que tudo o que querem é um caminho, frente a decisões sobre vida e morte. Ninguém gosta de ser o responsável por desligar a ventilação mecânica de um doente, ou por recomendar a interrupção da alimentação artificial, quando sabe que aquilo vai originar a morte.
Enfim, o médico só tende a se sentir mais confortável, ao pensar: “estou fazendo algo que meu paciente realmente quer”.
Se devidamente utilizado, feito e aplicado, o testamento vital é uma estratégia que serve a todas as partes.
Cbio – Porque o senhor considera que a “justiça relativa” pode ser tão ruim quanto a “falta de justiça”?
RN – Imagine um sistema de saúde que não conta com recursos para fornecer determinado remédio inovador, mas bastante dispendioso. É como se a sociedade dissesse: “gostaria de dá-lo a quem necessita, só que não há meios para isso hoje”.
Como paciente, eu lamentarei, mas aceitarei o argumento, pois sei que outros na mesma circunstância também não o terão o medicamento. Fazer o que?
É bem diferente de constatar que preciso, não recebo, mas é disponibilizado a alguém ali do lado, com caso semelhante ao meu. Fico muito mais indignado do que pelo fato de saber que não há remédio para todos.
Outro exemplo: passo seis meses na lista de espera para uma cirurgia e tomo conhecimento de que aquele vizinho que chegou ontem vai ser operado amanhã. É da natureza humana: não me importo por esperar dois ou três meses se for impossível ser operado mais cedo, porém, ficarei inconformado se outro ultrapassar a fila.
São duas situações ruins e desconfortáveis: a justiça relativa e a injustiça relativa.
Portanto, ao falar de justiça –e de ideais de justiça– é preciso considerar duas preocupações: tomar iniciativas, no sentido de elaborar as políticas públicas da forma mais justa possível; e nunca cair no erro de ser relativamente injusto. É intolerável discriminar pessoas exatamente na mesma situação.
Cbio – E o médico pode tomar a frente nesse debate?
RN – O médico pode e deve.
Os ideais hipocráticos da Medicina sempre afirmaram nossa responsabilidade de fazer o melhor pelo doente. Quando não há recursos para isso, apesar de ser essa a nossa vontade e o que a nossa ética nos obriga, é a sociedade quem deveria resolver.
No entanto, isso infelizmente não ocorre, já que nunca haverá recursos suficientes para que seja fornecido 100% do que achamos que temos direito em Saúde, sobretudo, com a evolução tecnológica da medicina que, nessas questões de justiça, se tornou parte do problema.
Reconheço não ser culpa do médico não haver recursos disponíveis a todos, mas este deve assumir seu papel no todo social, precisa ser um dos grandes aplicadores da justiça. Não pode deixar isso na mão administrativa, porque é sempre a pior: em boa parte das situações, contraria os mais elementares princípios da ética e da bioética.
* O professor Rui Nunes publicou 18 livros sobre temas relacionados com a bioética e a saúde, entre eles, Prioridades na Saúde; Humanização da Saúde; e Dependências Individuais e Valores Sociais. Em 2011 lançou Testamento Vital, pela Editora Almedina, Coimbra.
Veja também: Sociedade Plural
Em plenária temática professor da Universidade do Porto defende a possibilidade do debate com temas “universais” em Bioética
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