Confira como foi o Congresso de Ética do Cremesp

Congresso de Ética do Cremesp focaliza os
desafios em urgência e alocação de recursos

De que forma intensivistas e cirurgiões que atuam em atendimento de urgência e emergência combinam demandas sob extrema pressão a dilemas éticos do dia-a-dia? É possível empregar justa alocação de recursos, frente ao crescente número de ações judiciais, voltadas à obtenção de medicamentos de alto custo?

Por Concília Ortona

Encontrar respostas – ou pistas – para resolver tais dilemas figuraram entre os desafios propostos aos palestrantes (e à platéia, de cerca de 300 pessoas), presentes ao II Congresso Paulista de Ética Médica do Cremesp, realizado nos dias 30 e 31 de março, em São Paulo. Os trabalhos foram abertos pelo presidente do Cremesp, Desiré Carlos Callegari, que garantiu: as conclusões obtidas no encontro serviriam como “subsídio para nortear futuras decisões de natureza ética”, formuladas pela entidade.

Participaram das mesas de debate: Eduardo Juan Troster, coordenador do CTI-Pediátrico do Instituto da Criança, do HC; Norberto Antônio Freddi, presidente do Departamento de Pediatria da Associação de Medicina Intensiva Brasileira/AMIB; Mário Roberto Hirschheimer, intensivista pediátrico e presidente do Departamento de Bioética da Sociedade de Pediatria de São Paulo; Marcelo Semer, mestre em Direito Penal pela USP; Maria Cecília Marchese, coordenadora de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde da Secretaria do Estado da Saúde; Dário Birolini, professor titular de Cirurgia do Trauma da Universidade de São Paulo; Renato Ferreira da Silva, conselheiro do Cremesp e professor do Departamento de Cirurgia da Famerp; e Samir Rasslan, professor titular do departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP.

As mesas foram coordenadas pelos conselheiros do Cremesp Clóvis Francisco Constantino; Nacime Salomão Mansur e Isac Jorge Filho, respectivamente.

Terapia intensiva
No primeiro debate, especialistas da área reuniram-se para abordar enfrentamentos aos Dilemas Éticos na Unidade de Terapia Intensiva Infantil.

Eduardo Juan Troster trouxe dados alarmantes relativos a tratamentos considerados, por vezes, fúteis: segundo ele, 90% das pessoas que morrem no Brasil, morrem sofrendo. Para amenizar a situação, em determinadas situações defendeu o emprego de “cuidados paliativos exclusivos”, buscando sempre a anuência da família – pois os pais frequentemente têm autonomia de decisão, no caso de pacientes pediátricos.

“É essencial deixar claro que o paciente não será abandonado. Se a cura não for possível, faremos tudo para manter o bem-estar da pessoa”, argumentou Troster. “No Brasil, quando erramos com crianças, erramos sempre para mais”.

Em resposta a uma pergunta da platéia, Norberto Antônio Freddi – que, durante sua exposição, apresentou números sobre morte encefálica no Brasil –, enfatizou a importância de se obter consenso da equipe multidisciplinar, quanto ao emprego de cuidados paliativos. “A partir do momento em que conseguimos fazer sobreviver recém-nascidos cada vez menores, a neonatologia sofreu grande mudança. Como será a relação desta criança com seus pais, se não sabemos com clareza, se os bebês terão seqüelas? A família irá cuidar? Precisamos dividir decisões com companheiros”.

Em sua palestra, o colega Mário Roberto Hirschheimer completou o raciocínio. “Quando o doente pode se recuperar, nosso dever é preservar a vida. Quando não, nossa função se torna aliviar seu sofrimento”.

Mas o que leva os médicos a continuarem a investir obstinadamente em tratamentos “fúteis”? Várias razões podem vir à tona, como explicou Hirschheimer. Incluem-se aspectos institucionais e jurídicos (leia-se, medo de citação em processo por omissão de socorro) e, até, pura ganância, se o atendimento for prestado de forma particular. “O médico insiste não por um ato de bondade e, sim, de covardia, para não ser processado”, concordou Troster.

“Nem se pode dizer que tal posição se baseia em princípios religiosos, já que o papa João Paulo II defendeu o direito de o paciente manter a dignidade na morte. Bem antes, Pio XII afirmou ser lícito, em situações extremas, suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo se isso limitar a vida”, disse Hirschheimer. Lembra ainda que o Talmid, estudado por judeus, permite oração pela morte do doente, em casos de agonia extrema.

Sobre este assunto, o conselheiro Reinaldo Ayer de Oliveira, organizador do evento, se demonstra otimista: “em reuniões clínicas em oncologia observo que as decisões tomadas na prática não diferem muito daquelas desejáveis à luz da Bioética”.

Medicamentos de alto custo
Estaria o país vivendo uma “epidemia” de ações judiciais para a dispensação de medicamentos de alto custo a alguns pacientes? Ao arcar com tais remédios, o Estado prejudica uma parcela de pacientes que dependem do SUS? Em essência, tais perguntas estiveram implícitas durante os debates da mesa Medicamentos de Alto Custo, Direito à saúde e Judicialização.

Em sua fala, a representante da Secretaria do Estado da Saúde, Maria Cecília Marchese defendeu que sim, há prejuízos à parte dos doentes. Para provar, citou o aumento de ações solicitando certo tipo de insulina especial, caríssima, destinada a um grupo restrito de diabéticos. “O sistema público se transformou em uma espécie de farmácia do sistema privado. Não sei se é isso que o Brasil pode e quer fazer”.

Por sua vez, o juiz Marcelo Semer ponderou : advogados mal-intencionados e médicos que se submetem a “pressões escusas”, ao prescrever drogas, correspondem à minoria . “Não podemos tratar a perversão como presunção ou a exceção como regra”.

Explicou que, teoricamente, o judiciário não poderia intervir em políticas de Saúde, já que não são leis. Porém, argumentou: “ou o judiciário interfere na questão das políticas públicas, ou os administradores vão fazer o que for de seu interesse”.

Ética em urgência e emergência
Na manhã de sábado, dia 31 de março, os debates do Congresso de Ética do Cremesp voltaram-se aos Aspectos Éticos no Atendimento de Urgência e Emergência em Cirurgia. Desta vez, a dinâmica escolhida pela organização diferiu da adotada em outras mesas: perguntas referentes ao tema eram lançadas aos palestrantes e platéia, dando margem ao debate de idéias e troca de experiências.

O primeiro a falar foi o cirurgião Dário Birolini, que destacou: apesar da “boa vontade” em cumprir os ditames do Código de Ética Médica, nem sempre isso é possível, durante atendimentos de urgência e emergência. “Medicina é uma profissão em que não existe branco e preto e, sim, cinza. É lógico que sabemos ser direito do médico não atender, caso as condições não forem adequadas. Porém, se chegarmos hoje ao PS do HC, depararemos com mais ou menos 40 pacientes atendidos em macas. E o que faremos? Não atenderemos?”

Em resposta à questão “Os aspectos éticos são diferenciados quando do atendimento em urgência/emergência?”, o também cirurgião Samir Rasslan considerou: “não são diferente, em relação ao atendimento eletivo. Só que em emergência ‘pisamos em ovos’ e as conseqüências são mais graves”. E completa, “quem trabalha em emergência é um herói. É mal-remunerado; mal-dormido; mal-alimentado e, em determinados locais, corre o risco de morte”.

Da platéia, a conselheira Maria do Patrocínio Tenório Nunes questionou se as principais falhas observadas nessa modalidade de atendimento não se devem, na verdade, a uma inversão de posições. “Não deveriam ser os médicos mais experientes a atuar em urgência e emergência, em vez de os menos experientes, como acontece hoje?”, provocou.

Em relação à pergunta “sob o ponto de vista ético, como vê o problema de limitação de vagas em UTI a pacientes cirúrgicos atendidos em emergência”, Rasslan mencionou (novamente) a tendência a excessos terapêuticos, por parte de uma geração de profissionais. “Vemos doentes de 97 anos, terminais, entubados e, mesmo assim, encaminhados à diálise, quando começam a perder a função renal... É a coisa certa a fazer?”.

Finaliza a idéia o conselheiro Renato Ferreira da Silva, um dos palestrantes da mesa. “Há horas em que devemos passar aos nossos pacientes o exemplo do Papa: se for melhor morrer em casa, vamos morrer em casa”.

Outras opiniões
“Os pacientes passam primeiro pelo ‘Dr. Web’ para, depois, chegarem ao nosso consultório, ‘vomitando’ informações. Não se pode perder de vista que são os médicos os que detêm as informações técnicas para fazer diagnósticos e prescrever tratamentos”, Eduardo Troster

“Os familiares (dos doentes) nos julgam mais por nossa postura ética do que por nossa atualização técnica”, Eduardo Troster

“Pai e mãe são defensores de seus filhos, não seus proprietários. Portanto, cabe ao médico decidir sobre as técnicas e os melhores meios terapêuticos”, Mário Roberto Hirschheimer

“Antes de permitirmos a presença dos pais a UTI, para eles (o setor) era uma espécie de antecâmara do inferno. Agora, tal presença faz com que, aos poucos, a família adquira as mesmas expectativas da equipe. É bom para todo mundo”, Mário Roberto Hirschheimer

“Tudo o que falamos serve para nos ajudar a tirar um ‘peso’ de nossas costas”, Mário Roberto Hirschheimer

“É importante definir qual é o paciente terminal apenas no momento de tomarmos decisões sobre condutas”, Mário Roberto Hirschheimer

“Estimativas apontam que crianças que passaram por grandes períodos de internação estão entre as principais vítimas de maus-tratos, pela falta de vínculo afetivo com seus responsáveis”, Norberto A. Freddi

“Hoje em dia os remédios são ‘pedras preciosas’, fato que desencadeia hiposuficiência em quem não pode contar com eles”, Marcelo Semer

“Quanto mais tecnologia dispomos, tanto mais devemos discutir dilemas de natureza ética. E é nisso que se resume a nossa crise existencial”, Clóvis Francisco Constantino

“Ampliamos o tempo de vida de nossos pacientes, mas não temos tempo para conversar com eles”, Clóvis Francisco Constantino

“Este é o calcanhar de Aquiles periférico: medicamentos de exceção não podem ser equiparados com os de dia-a-dia. Mesmo assim, observamos professores de Medicina tendo algum tipo de relação com a indústria”, José Marques Filho, conselheiro do Cremesp, (na platéia)

“Vale o conceito de ética defendido pelo ex-governador Mário Covas: ter ética é tão raro que quem a tem é considerado esquisito... Ética é vista como uma espécie de xingamento e lembrada apenas quando a pessoa não a possui”, Isac Jorge Filho

“Em urgência, vale ainda o conceito ‘erre o diagnóstico, mas acerte a conduta”, Dário Birolini

“Temos um erro de postura quanto à Medicina... Vemos como ‘Medicina boa’ uma ‘Medicina equivocada’. É estupidez nos basearmos principalmente em exames e errarmos por culpa deles”, Dário Birolini

“Aqui ouvimos que ‘fica difícil fazer Medicina sem médicos’. Mas situação pior acontece quando tentamos fazer Medicina com maus médicos”, Dário Birolini

“A Medicina é simples. Somos nós que complicamos”, Samir Rasslan

“O médico não tem condição de gerar recursos... Como vou gerar recursos e vagas em UTI?”, Samir Rasslan

“É claro que ninguém vai assumir um trabalho de risco destes (em urgência e emergência) porque gosta e, sim, porque precisa. E, às vezes, as decisões a serem tomadas confrontam violentamente com o nosso Código”, Cid Célio Jayme Carvalhaes, presidente do Sindicato dos Médicos (na platéia)

A melhor conduta
Em sua fala, Mário Roberto Hirschheimer traçou interessante esboço sobre comportamentos éticos esperados de pediatras que atuam no – estressante – ambiente de UTI.

- Identifique as expectativas da família
- Encontre, na equipe multidisciplinar, o melhor interlocutor com a
família
- Esclareça de forma racional detalhes sobre tratamento e prognóstico
- Considere a participação da criança em seu tratamento

Se prepare:
- Conheça tudo sobre o paciente, começando pelo seu nome
- Converse com a família em ambiente privativo
- Apresente-se de modo conveniente (traje limpo, cabelo penteado)
- Não fale ao celular
- Evite expressões técnicas ou complicadas

Consentimento livre e esclarecido
Durante os debates, a importância do consentimento livre e esclarecido foi tópico que não obteve consenso.

Confira algumas das opiniões dos palestrantes:

“Todo consentimento informado é revogável”, Eduardo Juan Troster

“É desumano fazer uma mãe assinar um termo, concordando que nada mais será tentado pelo filho dela. Nestes casos, é preferível anotar nossa conduta só no prontuário”, Eduardo Juan Troster

“O consentimento informado é uma grande hipocrisia. É somente uma fantasia de legalidade, destinada a defender o médico”, Dário Birolini

“Uma das obrigações do médico é informar. Informações claras presentes no termo de consentimento informado até servem para a proteção do médico, mas, fundamentalmente, servem para a proteção do paciente”, Renato Ferreira da Silva.

 


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