07-11-2003

"Poderemos criar imortais"

John Harris aposta nos progresso trazido pelas pesquisas com células-tronco embrionárias


"Estamos no limiar de uma era na qual poderemos, literalmente, criar imortais".

Não! A afirmação não partiu de um roteirista de filme previsível de ficção científica ou de algum líder de seita exótica: tais palavras foram proferidas pelo filósofo e bioeticista John Harris – aliás, uma das participações mais esperadas e comemoradas no VI Congresso Mundial de Bioética, realizado em 2002

E o professor de Bioética e Diretor de Pesquisa do Centro para Ética Social e Política da Universidade de Manchester não decepcionou: mesmo os presentes que torciam  nariz em direção às – ultra-avançadas – idéias de Harris (que defende clonagem, incluindo a reprodutiva, e garante com todas as letras que embriões não são pessoas e, por isso, podem ser "destruídos") tiveram que reconhecer: seu bom-humor, afiado, sedutor, enfim, tipicamente britânico, figura entre suas principais qualidades.

"A cada gravidez bem-sucedida, cinco embriões são perdidos. Não me consta que as pessoas sejam capazes de deixar de fazer sexo para evitar tal carnificina", ressaltou, levando às gargalhadas a platéia que acompanhava atentamente à conferência Genoma, o Valor da Vida e os Direitos Humanos. Continuou: "sabe-se que, no fluxo menstrual de mulheres sexualmente ativas, perdem-se vários embriões. Por que, então, as chamadas organizações pró-vida nunca promoveram funerais destinados a absorventes íntimos?".

Mas o grande "gancho" da apresentação de Harris – que dividiu a mesa-redonda com seu contraponto, Fernando Lolas, diretor do Programa de Bioética da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e com Marco Segre, professor de Bioética da Faculdade de Medicina da USP e presidente da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas de São Paulo – foi a possibilidade de se "produzirem" homens imortais. Logicamente, com a ajuda de células-tronco embrionárias.

Durante rápida entrevista concedida à reportagem do Centro de Bioética do Cremesp, o disputadíssimo professor admitiu: ele próprio se deleitaria em fazer parte desse seleto grupo. "Tenho 57 anos e gostaria de viver, no mínimo, até 157". Gentil, Harris concordou em responder outras perguntas formuladas via e-mail.

Veja, a seguir, o resultado destas conversas:

Centro de Bioética - Em sua Conferência, por várias vezes o senhor comparou ocorrências naturais  às artificiais, referindo-se, especialmente, à perda de embriões durante concepção normal (envolvendo relações sexuais) e como produto de fertilização in vitro. Do ponto de vista moral, tais "desperdícios" teriam o mesmo peso? 

John Harris - Não existe diferença ética em desperdiçar embriões, falando-se em perdas naturais ou artificiais, já que, de qualquer modo, trata-se de uma escolha humana determinar se tais perdas ocorrerão ou não.

Partindo-se do princípio de que nós não somos obrigados a nos reproduzir, é claro que, certamente, a "destruição" acontece em conseqüência de uma escolha humana. Obviamente, é igual em reproduções assistidas.

CB - Então, algo natural nem sempre é moralmente correto?

Harris - Não. Não há nada que deva ser moralmente respeitável com relação ao natural. O natural é moralmente neutro!

Às vezes, o que é natural é ótimo, como um poderoso pôr-do-sol, uma colheita abundante, boa saúde.

Igualmente, doenças, terremotos e os milhares de outros choques naturais que nos perturbam não possuem nada de moralmente maravilhosos. É nossa responsabilidade escolher entre as coisas que a Natureza nos oferece, no sentido de combater o que de desastroso e cruel acontece e promover o que é útil e benevolente.

CB - Manter a vida de mulheres e homens adultos utilizando células-tronco embrionárias pode ser considerada "prioridade", em comparação a manter a "vida" do embrião? Afinal de contas, o embrião carrega o genoma humano e, teoricamente, deveria resultar em um bebê humano...

Harris - Essa é uma questão complicada, mas quase todas as sociedades aceitam que os interesses dos embriões são subordinados aos interesses dos indivíduos. Caso contrário, nenhum aborto poderia ser executado legitimamente e eu não conheço uma sociedade decente, nem mesmo, uma pessoa decente, que não admitam que abortos ocasionalmente devem ser feitos.

Isso pode significar que embriões podem, às vezes, ser subordinados às necessidades e interesses dos adultos. A única pergunta que fica é como e em que circunstâncias.

CB - Fiz uma entrevista com um outro bioeticista (Daniel Serrão) que me disse que embriões não podem ser destruídos simplesmente porque eles "não têm condições de usar a própria 'autonomia', no momento de optarem sobre sua destruição". Jamais o status moral do embrião deveria ser considerado?

Harris -Se o status moral do embrião deveria ser levado em consideração? Sim, é claro que deveria. Mas que status moral é este?

É lógico que embriões não tem autonomia, não podem ter a preferência em comparação aos seres humanos adultos. Quando tomamos decisões sobre embriões, temos que decidir não como respeitar suas autonomias, porque eles não as têm, devemos decidir a coisa certa a se fazer.

Ao ponderarmos sobre o que de correto deveremos fazer, precisamos comparar o "valor" da ajuda que esta "vida" (do embrião) poderia prestar, se fosse sacrificada.

CB - Em sua conferência, o senhor reconheceu que "existem estudos que se demonstram efetivos, empregando células-tronco de adultos". Estas pesquisas não parecem mais éticas, já que adultos podem escolher se querem doar ou não suas células-tronco?

Harris - Células-tronco adultas são preferíveis apenas na suposição de que embriões são iguais aos adultos. E que, conseqüentemente, seu consentimento deveria ser requisitado, antes de se usarem suas células.

Já que eu não acredito que embriões são iguais a adultos, não aceito a premissa dessa questão.

CB - De um jeito bem-humorado, o senhor apontou "incoerências" e "inconsistências"  alegadas por "católicos e organizações pró-vida" na defesa dos direitos dos embriões. Apontou como exemplo o desprezo por aqueles "desperdiçados" pelo processo de fecundação natural e a aceitação pacífica da eliminação de fetos com desordens genéticas. Por que a defesa dos direitos dos embriões costuma ganhar tanta ênfase?

Harris - Por que eles pensam que embriões são moralmente importantes? Como acreditam nisso?

Tenho argumentado que ninguém poderia aceitar a reprodução sexual normal, já que ela custa "as vidas" de cinco embriões, para cada nascido vivo.

Não posso crer que alguém consiga defender que um embrião "seja um de nós". Se aqueles que dizem isso realmente acreditam no que falam; se são hipócritas; se são burros; não tenho idéia.

CB - Nos Estados Unidos, o aborto (situação que, obviamente, causa a destruição de embriões) é legalizado. Não soa um pouco "estranho" o governo daquele país travar uma verdadeira guerra contra o uso terapêutico de células-tronco embrionárias?

Harris - Sim. Os EUA são totalmente hipócritas na sua atitude em relação a células-tronco, visto que o aborto é um direito protegido pela Suprema Corte.

Não deveríamos desperdiçar coisas úteis. Por exemplo, acho louca a história de enterrar órgãos saudáveis, que poderiam salvar vidas.

Para mim, não faz nenhuma diferença se o corpo é um embrião, um feto, um feto abortado, ou alguém que morreu num acidente numa estrada.
Nós deveríamos utilizar o material para salvar vidas!

Em resumo é sempre preferível fazer alguma coisa boa do que nada. É difícil encontrar argumentos que suportem a idéia de que seria melhor e mais ético permitir que material fetal ou embrionário fosse jogado fora, do que empregá-lo em uma boa proposta.

CB - Mas, na verdade, o que algumas pessoas contestam não é a utilização dos embriões que sobram, é a produção de embriões, exclusivamente lhes extrair células-tronco...

Harris - Em princípio, não vejo diferença entre produzir embriões para pesquisa e usar aqueles que são supérfluos, para atender às necessidades humanas.

Como já disse: existe um senso no qual ambos os tipos de embriões são supérfluos às necessidades dos humanos. Se não fossem, então, nem poderiam ser usados. E mais: se essa fosse a lógica, todos os embriões resultantes de fertilização in vitro deveriam ser implantados.

Isso implicaria no dever moral de as mulheres aceitarem todos os embriões, para gerá-los. Já pensou?

CB - Falando sobre clonagem reprodutiva. O senhor diz que ninguém acha terrível o nascimento de "gêmeos" - processo equivalente a uma "clonagem confeccionada pela Natureza". Alguém poderia argumentar que processos naturais não envolvem "intenções baseadas em decisões intelectuais, científicas ou econômicas", como ocorre nas pesquisas de laboratórios.

Harris - Sob meu ponto de vista, se nós não nos lamentamos o nascimento de gêmeos idênticos por "decisão" da Natureza, porque deveríamos nos afligir ou nos opor a isso, quando deliberadamente escolhido pelos seres humanos?

Um paralelo poderia ser traçado se aceitássemos doenças trazidas pela Natureza, mas não aquelas induzidas por seres humanos. Isso, claramente, seria inconsistente.

Clonagem reprodutiva é moralmente aceitável, não existe nada de errado com ela.  Deus e/ou a Natureza fazem isso todo o tempo e ninguém discute.

CB - O senhor cogitou a possibilidade de seres humanos se tornarem "imortais", ou viverem até 120 ou mais, com a ajuda das modernas técnicas da Ciência - que incluem o emprego de células-tronco. Quais seriam as implicações morais e práticas desta "imortalidade"?

Harris - Nossa, essa é uma questão de resposta complicada e longa. Nós teríamos que encarar a perspectiva das populações mais pobres. Será que elas, realmente, gostariam de vidas longas ou curtas?

Por outro lado esta é, de fato, uma situação que já existe no mundo. Isto é, o impacto de vivermos mais seria pequeno, porque existem muitos milhões que não têm disponível a tecnologia. Seria tão caro e tão difícil tecnologicamente, que pouquíssima gente poderia usufruir o progresso.

Se um dia a tecnologia se tornar barata e disponível, então deveríamos encarar tais problemas... Porém, há um longo caminho até chegarmos lá. Teríamos que decidir entre escolher X milhões de pessoas a serem substituídas por X milhões de pessoas, e quem iria viver "para sempre" e outros, que não seriam substituídos.

O que configuraria numa questão moral de dificílima resposta. É claro que não existem critérios para decidir quem deveria ficar e quem deveria partir, como não há para decidir quem deveria ter uma boa saúde e quem não deveria; quais seriam ricos e quais, pobres.

Neste momento, talvez nossa responsabilidade seja encontrar uma forma de reduzir injustiças, sem derrubar os benefícios da ciência. Para que a oportunidade de viver "para sempre" pudesse ser distribuída de maneira justa.

Aumentar a quantidade de pessoas que jurassem "gostaria de durar eternamente". Todas as coisas boas da vida deveriam ser maximizadas o quanto possível. Traduzindo: é claro que tudo isso não deveria ser minimizado, da forma como desejariam os que se opõem à imortalidade. 

CB - O senhor gostaria de ser um "homem imortal?"

Harris - Isso seria ótimo! (risos). Tenho 57 anos, e eu vou lhe dizer uma coisa: adoraria viver até 157, pelo menos.

Por outro lado, se alongar a vida fosse possível, Stalin ainda estaria vivo com 300 anos, com idéias de 300 anos!

Sério, agora. Não importa se pessoas viverem um longo tempo ou um curto tempo. Elas deveriam estar preparadas para mudar de idéia.
 
Poucas e boas do professor Harris

. Sabemos que, para cada nascido vivo, são perdidos cinco embriões em abortos nem percebidos. Por que os grupos pró-vida, então, não promovem campanhas para prevenir tal carnificina?

.No caso de embriões que sobram do processo de fertilização assistida, não há notícias de mulheres provenientes de organizações pró-vida que se ofereçam para gerá-los.

. Há um tempo atrás, inventei uma ordem fictícia, quase religiosa, denominada "As Irmãs do Embrião". Não sei o porquê de nenhuma mulher oferecer seu útero para tarefa tão gratificante.

.Qualquer pessoa que faz sexo sem proteção sabe do risco substancial de se criar um embrião que provavelmente irá morrer, por eliminação natural. Poucos iriam considerar este fato como razão suficiente para parar de ter relações sexuais desprotegidas. (É usualmente o medo de criar um embrião que não irá morrer o que costuma motivar as pessoas)

. Finalmente, é notório que vários defensores pró-vida, incluindo católicos, estão preparados para permitir abortos em circunstâncias excepcionais, como salvar a vida da mãe ou após estupro. No primeiro caso, como seria a escolha por parte de quem acredita que um embrião tem status moral idêntico ao de um adulto? No segundo, por que é permitido assassinar um embrião, inocente no crime? Tudo isso é incoerente.

* John Harris é Sir David Alliance Professor of Bioethics da Universidade de Direito de Manchester. É também membro do United Kingdom Human Genetics Comission e da British Medical Association.
Foi um dos fundadores da International Association of Bioethics (IAB). Atuou como consultor ético de vários órgãos, dentro e fora do Reino Unido - inclusive no Parlamento Europeu e na Organização Mundial da Saúde (OMS).
É autor ou editor de quatorze livros - entre os quais, Wonderwoman & Superman: Ethics & Human Biotechnology (Oxfort University Press); Ethics, Law and Nursing (Manchester University Press) e Clones, Genes and Immortality (Manchester University Press) - e mais de cinqüenta artigos publicados em revistas científicas.

 
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