Três anos atrás, durante o Congresso Mundial de Bioética realizado em Brasília, o geneticista mexicano José Maria Cantú obteve um prodígio: foi o único entre as dezenas de palestrantes, tanto estrangeiros quanto brasileiros, a ser aplaudido de pé, após sua palestra relacionada aos aspectos éticos da pesquisa em genética e as desigualdades sociais.
Não foi menos marcante sua presença no Congresso Brasileiro de Bioética, realizado em setembro de 2005, em Foz do Iguaçu: saudado com entusiasmo durante apresentação vinculada a temas semelhantes, a Medicina Genética e o Direito Universal à Saúde, nos corredores do evento era cumprimentado por – literalmente – todos os que presenciaram sua fala emocionante.
É justamente a emoção expressada em palavras a mais curiosa marca de personalidade pelo professor da Universidade de Guadalajara: revolucionário e (indignado) defensor dos direitos humanos, marxista “de carteirinha”, de maneira doce ensinou à platéia: “os países da América Latina precisam aprender a bailar”.
Confira, a seguir, entrevista concedida com exclusividade ao site do Centro de Bioética do Cremesp.
Nota da R. Infelizmente o prezado professor José María Cantú faleceu em12 de novembro de 2007, Buenos Aires, Argentina
Cbio – O que o senhor quis dizer em sua palestra, ao afirmar que a América Latina precisa “aprender a bailar”?
José Maria Cantú – Que não saiamos por ai atropelando uns aos outros. O pior inimigo de um brasileiro é outro brasileiro. O pior inimigo de um mexicano é outro mexicano, e de seu mesmo ofício! Então, precisamos mudar e valorizar a solidariedade, o trabalho de grupo, combater os egoísmos. É neste sentido que eu diria “aprender a bailar”.
Respeitar o outro e ser respeitado. Entender que o outro está “dançando” com a gente, não é apenas uma pessoa sozinha. E dançar é maravilhoso, tomando todo o cuidado para não pisar nas damas (risos). Não dar golpes, rasteiras, atropelarmos uns aos outros.
Cbio – Por onde começar as “lições de dança”?
Cantú – Deve haver maior consciência por parte dos responsáveis pelas políticas, pela direção do país e do estado. A nós, em nosso dia-a-dia, precisamos lhes dizer e lhes mostrar que estão equivocados.
Assim, nos tornaremos solidários com os outros seres humanos e não apenas com nossos compatriotas, garantindo a “saúde para todos” – africanos, asiáticos, americanos, conforme os objetivos da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Se tivermos que trabalhar mais, que pagar mais impostos para que todos, sem exceção, tenham saúde, então, que assim seja!
Cbio – Existe alguma forma de chegar-se a um consenso, no sentido de resolver os problemas de todo o mundo?
Cantú – Nos falta muito... falta tempo, trabalho, mas eu creio que já estamos tomando tal consciência.
Creio que os governos de Lula, de Chaves (Hugo, presidente da Venezuela), de Tabaré (Vázquez, presidente do Uruguai) de Lagos (Ricardo, presidente do Chile); Kirchner (Nestor, presidente da Argentina), vão mais esquerda, pois já se deram conta de que a fórmula da direita não funciona. O neoliberalismo faz mais mal do que bem.
Hoje, o poder no México está nas mãos de um governo de direita, que cobra os pobres para lhes oferecer serviços médicos extremamente primários e raquíticos. Simplesmente fatal a grande quantidade de pessoas.
No meu país existem 12 milhões de indígenas, a maior população desta cultura no continente latino-americano. Um em cada oito mexicanos é – ou vive numa comunidade – indígena. Por serem paupérrimos, apresentam mortalidade infantil bem maior do que as populações em geral, além de enormes deficiências de atenção médica e de todo o tipo de atenção social.
Por conta disso, precisamos buscar políticas que nos levem ao socialismo outra vez.
Cbio – Então, as pessoas que o chamam de “marxista”, como disse em sua palestra, estão com a razão?
Cantú – Mencionei que, em Bioética, o marxismo tão desafortunadamente desacreditado volta a tomar vigência, pelo menos, no que se refere à parte humanista, ao desenvolver consciência social, ao ser solidário.
Oscar Wilde dizia que a caridade do homem tenderia a desaparecer, porque, no socialismo, as pessoas teriam satisfeitas todas as suas necessidades. Portanto, ninguém precisaria ser caridoso ou piedoso, porque quem forneceria o necessário seria o Estado.
Veja: não acho que seja benéfico não sermos caridosos ou piedosos. Porém, as coisas tornar-se-iam mais fáceis se a iniciativa partisse de cima para baixo, com o apoio do povo.
Na Noruega, por exemplo, a diferença entre patrão e empregado é de três a um: é cultural, as pessoas admitem que o patrão pode ganhar, no máximo, três vezes mais do que o empregado. Não ganha mil ou milhões de vezes mais, como ocorre nos países da América Latina.
Poderiam me perguntar: é errado ganharmos um bom salário? Óbvio que não. Só que é preferível que sejamos igualitários, queiramos bem os empregados, e que estes contem com condições dignas de vida.
Cbio – Mas o tamanho da Noruega é bem diferente, em comparação ao do Brasil ou o do México. Os problemas são mais simples de se manejar...
Cantú – Sim, somos muitos, mas podemos, contanto que acreditemos no direito de todo o povo a boas condições de vida. Dando-lhe igualitariamente a melhor educação, alimentação e condições sociais salutares para a produtividade.
Precisamos acreditar, sobretudo, que há uma ética que deve ser mudada. Deixar de sermos desonestos, de sermos imorais. Isto vai acontecer: estou convicto de que nesta primeira metade do século XXI nos empenharemos em garantir o direito a Saúde para toda a humanidade.
Parece utopia, mas há caminhos.O Estado, por exemplo, não pode resumir sua atuação a dar acesso à habitação ou comida às pessoas: se o indivíduo está doente, precisa de um médico!
Então cabe a nós, como médicos, participarmos das transformações, pelo menos, sermos conscientes dos problemas. Sem dúvidas, a Medicina sempre vai precisar contar com seu aspecto compassivo. É de sua essência o altruísmo, a piedade, para que sigamos gostando-nos uns dos outros.
E o melhor remédio é o amor. Que nos espelhemos no amor maternal, um amor incondicional, que não comporta egoísmos. Se tiver medo, as coisas simplesmente não funcionam.
Nós, médicos, devemos sempre trabalhar com os melhores princípios éticos e solidariedade para com os pacientes e seus familiares, respeitando tudo o que estes poderiam desejar. Isto inclui pedirmos licença para tomar-lhes uma amostra de sangue ou tirarmos uma fotografia.
A atenção é necessária, para não desrespeitarmos cada vez mais os direitos dos doentes, como está acontecendo atualmente, por causa do distanciamento entre paciente e o profissional. Existe uma desconfiança mútua gerada pelo sistema de atenção em saúde.
Cbio – O senhor começou a trabalhar em Ética Humana bem antes do surgimento da Bioética. O que o motivou?
Cantú – Atuo em Ética Médica desde 1965, até hoje. Durante 32 anos, fiz parte de um grupo no Instituto Mexicano de Seguro Social, na área de pesquisa.
O que me motivou à área da ética em relação ao ser humano foi trabalhar em assessoramento genético, que implica na convivência com muitos problemas de difícil solução e no exercício da compaixão.
Como mencionei em uma palestra, o descobrimento de um gene não implica encontrar soluções imediatas para a enfermidade. Então, a ajuda que podemos dar aos nossos pacientes resume-se nas informações sobre riscos e probabilidades.
Quase nada se pode fazer para modificar o destino de um feto que apresenta síndrome de Down ou retardo mental. Mas é viável prevenir que nasçam outras crianças com tais problemas, informando seus pais sobre os riscos futuros, mostrando real solidariedade.
Em minha área, ainda, se pode predizer uma enorme quantidade de enfermidades, capazes de acometer um adulto em sua fase produtiva. É, portanto, nossa responsabilidade mantermos o absoluto sigilo quanto a elas, em respeito ao paciente.
Creio que me aproximei mais dos pacientes como ser humano já que, tecnicamente, lido com problemas tão dolorosos e posso fazer pouco.
Cbio – No México, como no Brasil, não se pode realizar um aborto legal por causa de doenças graves, como anencefalia?
Cantú – Até muito recentemente era impossível promover um aborto por este motivo. No Estado em que vivo, Jalisco (onde fica a cidade de Guadalajara) a Igreja é muito forte e as leis demasiadamente restritivas.
Mas pelo menos nove estados, dos 32 de meu país, permitem aborto justificado por genésica, ou seja, em vista da malformação do produto ou por este carregar alteração grave, como anencefalia.
Isso indica uma espécie de abertura, o que é algo muito positivo, pois as opções são mais livres. As pessoas que não querem se aproveitar dessas opções têm o direito. No entanto, é justo que elas existam e sejam apresentadas a quem precisar e quiser.
Cbio – Como geneticista, o senhor defende a medicina genética. Porém, em sua palestra, deixou claro que os avanços neste campo tendem a aumentar a distância entre ricos e pobres. Por que?
Cantú – Esta brecha é cada vez mais ampla e surge do neoliberalismo, deste capitalismo rampante, voraz, antropófago.
Está sendo um ano terrível para a América Latina, particularmente, para o México. Precisamos reverter a tendência a participarmos do jogo apenas para fazer parte de um determinado bloco.
Por que a distância é aumentada devido às conquistas genéticas?
A genética traz muitas possibilidades de melhorar a qualidade de vida. Não propriamente de curar, como disse, mas melhorar a esperança da vida humana e evitar condições que levem a enfermidades, não somente em crianças, mas também em adultos.
Infelizmente, há populações para as quais o acesso a medicamentos caros, técnicas caras e diagnósticos caros vai se tornar cada vez mais difícil.
A Genética, a Genômica e a Medicina se submetem a um mercado extremamente bem-organizado pelas companhias farmacêuticas, que pretendem obter o maior número de vantagens e lucros, com o menor número de investimentos e gastos, portanto, inacessível aos que não têm como pagar os benefícios.
Para conseguir mudar o quadro seria necessário buscarmos a base da medicina, que é aquela que proporciona o cuidado com a saúde como direito universal. É o que acontece no Canadá, em Cuba, em Costa Rica, falando-se de América, e em países europeus, que se empenham em garantir Saúde a todos os seus cidadãos.
Sofremos pela ação dos norte-americanos que nos empurram em direção à privatização da Medicina. Se a Medicina for privatizada, será cada vez mais custosa! Chegaremos ao paupericídio – palavra que significa a eliminação dos pobres. Porque não lhes damos medicamentos, não lhes abrimos acesso aos novos benefícios da medicina.
É muito mais grave do que genocídio, pois a tragédia não se dirige a um grupo populacional específico: pode eliminar os pobres do mundo, inclusive, os dos Estados Unidos. Lá, há 45 milhões de cidadãos que não possuem o direito a nenhum tipo de serviço médico. Caso apresentem emergências, são levados ao hospital, mas não existe maneira de curar-se de nada. Não têm direitos a médicos, a serviços médicos.
É como se alguém afirmasse “você vai morrer, sinto muito”.
E acaba morrendo tanta gente curável! Se no país mais poderoso do mundo acontece isso, imagine o destino dos pobres da América Latina, inseridos num contexto de tanta deficiência nos serviços coletivos de prevenção, como em vacinação, pura e simples.
Cbio – Para o senhor, não soa estranho que países com tantas dificuldades como o Brasil e o México estejam discutindo clonagem, se os problemas pode estar em alocação de recursos em saúde?
Cantú – A pauta Bioética deveria ser diferenciada nas várias regiões do mundo.
Teríamos que começar do básico, aprender verdadeiramente com exemplos dados pelos grupos indígenas que conservam tradição de relação, tradição de proteção, uns com os outros. Enfim, recuperar o humanismo perdido.
Outros raciocínios do professor Cantú
(extraídos de seu texto, El respecto a la vida: diagnóstico prenatal, aborto eugenésico Y clonacion terapêutica (veja íntegra)
- Desde um tempo imemorável temos evidências de que certas enfermidades se apresentam em determinadas famílias com maior freqüência do que se esperaria ao acaso. (...) Até que a Ciência tenha capacidade para oferecer tratamento a algumas doenças genéticas mais desastrosas e funestas, o melhor recurso que temos é o da prevenção.
- Os custos de qualquer tipo de clonagem humana seguramente serão suficientemente onerosos e, em conseqüência, excludentes às maiorias pobres do planeta.
- O ser humano talvez não seja por natureza um ‘animal moral. Resta que o curso da evolução o transforme em tal.
- Hoje vivemos em um mundo de amplíssima diversidade que, com o anseio de uma globalização total, pretende uma extremista ‘clonagem social’ que inclua a aceitação de ‘guerras defensivas’, ‘invasões preventivas’ e toda a classe de horrores que geram o ‘paupericídio’, produto da exploração, da discriminação e do acesso seletivo imposto pela nova medicina.
- Evidentemente, a clonagem social é muito mais antiga do que a oferecida pela nova biotecnologia.
- As religiões, os sistemas políticos, econômicos e sociais e a perpétua inércia auto-replicante (com utopias de liberdade, igualdade e fraternidade) têm mantido diversificada, mas de certo modo, rivalizada, a comunidade mundial.
* O professor José Maria Cantú foi fundador de las Redes Latinoamericanas de Genética Humana y de Bioética Formado em 1965 pela Universidade Nacional Autônoma do México, com pós-graduação em Genética Humana pela Sorbonne, de Paris, França, é professor da Universidade de Guadalajara, onde fundou o programa de doutorado em Genética Humana. Foi chefe da divisão de Genética do Centro de Investigação Biomédica do Ocidente, do Instituto Mexicano de Seguro Social.
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