Quem se encontra pela primeira vez com H. (de Hugo) Tristram Engelhardt, professor de Filosofia da Rice University e professor emérito do Baylor College of Medicine, no Texas, EUA, se surpreende com sua imagem que, por vezes, contrasta com a sisudez de seus (relevantes) textos: as botas, gravata em forma de laço e barba estilo “Tio Sam” não refletem a profundidade de conceitos citados por dezenas de autores, como o dos Estranhos Morais – que, em suma, aponta à possibilidade de pluralismo pacífico em Bioética.
Mais curioso ainda é o fato de o texano defender acima de tudo a secularidade nos diálogos bioéticos sendo, ele próprio, cristão ortodoxo praticante – carregando, portanto, idéias “conservadoras” sobre temas como aborto e a manipulação de embriões, por exemplo, considerados “manifestações altamente maléficas”, conforme definiu em entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp, durante participação no VI Congresso de Brasileiro de Bioética, em setembro de 2005 em Foz do Iguaçu.
Ocasião em que – aliás, como de costume – abordou Religião e Bioética, na palestra Christian Bioethics in a Post-Christian Age (algo como Bioética Cristã no Período Pós-Cristão) quando apontou, entre outros tópicos: “a Bioética Cristã e a Secular se distinguem não apenas em seus comprometimentos morais, mas também em seu entendimento quanto ao significado da palavra ‘conhecimento’”.
Vale a pena conferir pontos de vista do – doce e simpático – professor Engelhardt, que começou a escrever a respeito de Bioética “de forma natural, por causa do engajamento tanto em Medicina quanto em Filosofia”, antes de o termo ser cunhado por Van Rensselaer Potter, em 1970.
Nota da R. O caríssimo professor Engelhardt infelizmente faleceu em 21 de junho de 2018, em Houston, no Texas
Centro de Bioética – O senhor é um dos grandes nomes da Bioética na atualidade e escreve sobre o tema desde antes de o termo haver sido proposto pelo professor norte-americano Van Rensselaer Potter. Seu primeiro texto “bioético” referiu-se ao quê?
H. T. Engelhardt – Comecei a escrever sobre a Ética e o Aborto, longo tempo atrás.
Antes, havia falado bastante sobre filosofia da Medicina, adaptando a classificação de algumas doenças. Como médico e filósofo, achei que poderia contribuir com os meus colegas desse jeito.
Cbio – Em sua palestra, o senhor disse que os conceitos de Potter não são empregáveis hoje em dia. Também o professor Kottow (Miguel, médico chileno) afirmou, no próprio discurso, que os conceitos de Potter tornaram-se “inúteis”. É uma tendência?
Engelhardt – Potter estava pensando em ecologia quando inventou a palavra “Bioética”, em 1970, não em aspectos éticos ou bioéticos da Saúde. Seu foco direcionou-se à ética e o meio ambiente.
Não diria que seus conceitos ficaram “irrelevantes” – o conhecimento do professor Potter em ética ambiental parecia muito extenso –, apenas que a abordagem dele se referia a uma área diferente da qual se imagina.
O conceito foi totalmente refeito em 1971 por Hellegers (Andre, ginecologista e obstetra e fundador do Kennedy Institute), quem deu o sentido à Bioética, como esta é entendida atualmente.
Cbio – Em suas palestras e textos, freqüentemente está embutida a relação entre a Bioética e o Cristianismo. Por que, então, o senhor afirma que a Bioética é “secular”?
Engelhardt – Você não me entendeu: digo é que a Bioética deveria ser secular. (risos)
Precisamos fazer uma distinção entre diferentes condutas e diferentes moralidades.
Quando andamos nas ruas de São Paulo, ou de Houston, no Texas, vemos pessoas fazendo o mesmo, indo trabalhar, para a escola, passeando, mas que acreditam em coisas diferentes – ou simplesmente, que não acreditam em nada.
Seria bom, então, estabelecer um ponto de interação entre toda essa gente, uma moralidade secular, uma Bioética secular, que comporte tolerância e enorme gama de idéias distintas. Só assim estabeleceremos diálogo verdadeiro, capaz de gerar contribuições. É inteligente darmos espaço às nossas sociedades, para que travem variados níveis de discussões bioéticas.
Cbio – Essa convergência é possível?
Engelhardt – Sim! E já acontece! No Texas, por exemplo, discordamos sobre coisas importantes, mas podemos trabalhar juntos em um mesmo hospital, se este for secular. Movidos por nossa própria moralidade, mas uma moralidade secular.
Se vivêssemos várias vidas em uma única dimensão, deveria haver um espaço eminentemente secular, onde encontraríamos pessoas de diferentes crenças, ou sem qualquer fé.
Enfim, precisamos distinguir ideologia de fé.
Em um dos meus livros, (Fundamentos da Bioética, 1998), focalizo a possibilidade de trabalharmos juntos e pacificamente, ainda que não dividamos a mesma religião ou ideologia. Trata-se da Bioética dos “estranhos morais”.
Suponhamos que o nosso trabalho seja dentro de um grande hospital religioso. Logicamente ficaremos ao lado de médicos, enfermeiros e pacientes que são estranhos morais!
A solução contra qualquer atrito é mantermos o respeito e a interação humana, se presumirmos que nossa moralidade possa soar como uma ofensa. É tão simples!
Cbio – Seu país, os EUA, abriga vários dilemas morais amparados por pontos de vistas religiosos. Bush, que é evangélico, é reticente ao estudo com embriões, por exemplo. Não seria o caso de aplicar-se o conceito dos “estranhos morais”, enfim, da tolerância, também a este âmbito?
Engelhardt – É bom que fique claro: os Estados Unidos não proíbem a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias. Veta o uso de dinheiro federal para tanto, o que é moralmente defensável.
Se há pessoas que crêem piamente que a destruição de embriões é má, estas não podem ser obrigadas a pagar impostos, voltados a dar suporte a algo que agride suas convicções.
Dá para entender se disserem “se você quiser usar seu próprio dinheiro, esteja à vontade, mas se eu achar que isso é terrível, não vou arcar com o custo”.
Nós, cristãos, temos idéias profundas sobre o mundo. Não cabe a nós – pelo menos, não temos a certeza de que cabe a nós – converter outros aos nossos pontos de vista. No entanto, é justo que nos permitam acreditarmos no que acreditamos.
Cbio – Isto quer dizer que nada vai modificar a opinião dos católicos e demais cristãos em relação às pesquisas com células-tronco embrionárias?
Engelhardt – Existem discordâncias entre o Cristianismo Ortodoxo e o Catolicismo Romano, apesar de nossa origem ser conjunta, pois nos separamos só no século VIII. Nossos padres, por exemplo, usualmente se casam.
Porém, desde o século I, nos opomos da mesma maneira ao extermínio de vida embrionária precoce. Defendemos que qualquer intervenção em uma vida embrionária é maléfica e extremamente nociva.
Obviamente, incluo aqui aborto, que significa matar vida humana precoce.
Cbio – Em pensamentos como esses, o senhor está utilizando seu raciocínio ético ou religioso?
Engelhardt – A Ética não possui apenas um significado.
Existe uma ética para trabalhar pacificamente, ao lado de estranhos morais. A tal “ética secular” necessária, porém parcial e incompleta. Há quem creia em reencarnação humana, no poder do Cosmos, e outros que consideram tudo bobagem. De qualquer maneira, o importante é convivermos em paz.
Não falo apenas de religião. Médicos sempre acompanham pacientes dos quais discordam, nossos prezados “estranhos morais”, que querem fumar cinco maços de cigarros por dia, não aceitam tratamento de diabetes, não se importam com hipertensão. Têm moralidades diferentes das nossas.
O que fazer? Abandoná-los?
Evidente que não. Sou um médico, não sou “O Caminho”. Meu papel ético e moral é tratá-los com respeito, apresentar opções. Convidá-los a parar de fumar, a estarem atentos ao diabetes e controlar a hipertensão.
Já pensou? Seu presidente pode até não concordar com hábito de fumar. Mas serão os cidadãos brasileiros a escolherem o que é bom para si: tem quem esteja feliz e contente em conviver com o próprio diabetes descontrolado e com a hipertensão. Diga, pode ser classificado como antiético?
Cbio – Como bioeticista e religioso, qual é sua opinião sobre eutanásia – ou morte por restrição alimentar, como ocorreu com Terri Schiavo?
Engelhardt – Em qualquer igreja cristã que você entrar verá, no altar, Jesus sofrendo na cruz. Isso simboliza para nós, cristãos, uma espécie de “chamado” a sermos pacientes, como Ele. Ou seja, não devemos dar cabo de nossas vidas ou da dos outros, pura e simplesmente.
Por outro lado, cremos que é atitude ruim e muito arrogante gastarmos 100% da nossa energia para prolongarmos inutilmente uma vida.
Somos proibidos de matar ou cometer suicídio, mas desrespeitaremos as leis divinas, se tentarmos salvar uma vida a todo o custo. Encontrar um ponto de equilíbrio ético para todo esse dilema é um grande desafio.
Cbio – No campo da Bioética há algum desafio em comum ao mundo?
Engelhardt – Pessoas de diferentes partes do mundo olham aos desafios de formas diferentes.
Hong Kong está refletindo se o paciente, vulnerável em princípio, deve ser consultado antes de determinado procedimento, de forma a consenti-lo.
Os cidadãos daquele país preferem perguntar a opinião da família do doente, quem “verdadeiramente merece apoio”. Não entendem “autonomia” da maneira como nós, americanos, compreendemos. Valorizam a autonomia da família.
Neste sentido, vão mais longe: crêem que o Ocidente, fadado à maldade e à solidão, não faz o mesmo, porque perdeu o senso e o significado de “família”. Estão, tentam não passar pela “sombria fragmentação” enfrentada por nós.
É por isso que julgo a Bioética tão útil, no sentido de abrir espaço às formas diferentes de perceber a estrutura da Medicina e a vida humana, em culturas variadas. É ferramenta importante, pois se vincula à totalidade de aspectos da vida, da sexualidade à reprodução, nascimento, morte, alocação de recursos...
Por meio dela subvencionamos discussões relativas ao desenvolvimento de novas tecnologias, por exemplo, que têm um custo, pois são capazes de modificar a forma de nascer das nossas crianças e os padrões de morte.
Cbio – Os “Princípios” recebem sentidos diferentes, em diferentes nações? O senhor já falou em Hong Kong. Também no Japão, a visão de “autonomia do paciente” é diferente da ocidental. Há quem a considere estratégia usada pelo médico para se isentar da responsabilidade no tratamento...
Engelhardt – É muito importante pensarmos no real significado dos “princípios” da Bioética. Quando Beauchamp (Tom Beauchamp) e Chidress (James, ambos vinculados ao Kennedy Institute of Ethics) escreveram o livro Principles of Biomedical Ethics tentaram criar uma Bioética universal.
A grande dificuldade é que ninguém concorda sobre “o quê” uma Bioética Universal deve ser. A tentativa de Beauchamp e Chidress, que queriam estabelecer uma moralidade e uma ideologia para todo o mundo, foi um erro. Falhou, basicamente, pelo fato de não compartilharmos uma moralidade idêntica.
Não estou endossando maior relativismo. Minha postura não é relativista, é pacifista. Digo que uma Bioética secular não deve se relacionar à moralidade. Deve permitir convivência pacifica e tolerante com a pluralidade.
Cbio – Em várias oportunidades, tanto no Congresso Brasileiro quanto no Mundial, participantes destacaram que progressos trazidos pelo genoma e pela genética, enfim, as novas tecnologias, aumentam a “brecha” existente entre ricos e pobres. É verdade?
Engelhardt – Não concordo.
Em 1964, quando eu era jovem, ninguém podia ter computador, pois era extremamente caro. Agora, a maioria é capaz de comprar um – ou mais de um.
O que as pessoas não percebem é que não alcançaremos coisas marcantes, grandes progressos, em um dia – ou em um ano. Se não reconhecermos que demora um certo tempo até tecnologias expressivas ficarem baratas, nunca as produziremos.
Qualquer coisa que seja cara e difícil, como o mapa de engenharia genética, vai estar disponível às próximas gerações. Se não fosse, seria um choque: não há exceção, depois de um período de tempo, todas as tecnologias tornam-se mais acessíveis.
Quando a penicilina foi inventada, era muito rara. Agora é fácil. Se proibirmos as grandes companhias de produzirem medicamentos complexos, por acharmos que serão inviáveis em princípio, quem tem dinheiro investirá em videogames.
Existem indivíduos que fazem coisas movidos pelo amor, não pelos lucros. Mas a maioria quer algo em troca, também no campo da pesquisa. Precisamos fornecer estrutura, ser pacientes com eles. Valorizar sempre inclinações e criatividade. Seguir e apoiar os humanos.
Veja: ninguém ficaria contra pessoas deixarem de fazer videogames para investirem em Medicina, se o resultado fosse novas drogas para tuberculose resistente, ou para a Aids resistente, gripe aviária. E o contrário?
Mais opiniões do professor Engelhardt
- A Bioética funciona como uma lógica do pluralismo, como um instrumento para a negociação pacífica das instituições morais
- O mesmo senso de oportunidade que levou os americanos a expandirem suas fronteiras geográficas fará com que cruzem limites da revolução genética. Com menos perplexidade moral do que muitos europeus considerariam decente
- Rebatizei o “princípio da autonomia” como o “princípio do consentimento”, para indicar melhor que o que está em jogo não é algum valor possuído pela autonomia ou pela liberdade, mas o reconhecimento de que a autoridade moral secular deriva do consentimento dos envolvidos em um empreendimento comum
- O princípio do consentimento coloca em destaque a circunstância de que, quando Deus não é ouvido por todos do mesmo modo (ou não é, de maneira alguma, ouvido por ninguém), e quando nem todos pertencem a uma comunidade perfeitamente integrada e definida, e desde que a razão não descubra uma moralidade canônica concreta, então a autorização ou autoridade moral secularmente justificável não vem de Deus, nem da visão moral de uma comunidade particular, nem da razão, mas do consentimento dos indivíduos
- Nessa surdez a Deus e no fracasso da razão os estranhos morais encontram-se como indivíduos
* O professor H. Tristram Engelhardt atua no Baylor College of Medicine e na Rice University, além de ser membro do Center for Medical Ethics and Health Policy.
É editor do Journal of Medicine and Philosophy e co-editor de publicações como Christian Bioethics e Philosophical Studies in Contemporary Culture. Assina quase trezentos artigos e diversos livros, como The Foundations of Bioethics – traduzido para dezenas de idiomas, como chinês, italiano, japonês, português e espanhol – e Bioethics and Secular Humanism: The Search for a Common Morality.
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