O teólogo, filósofo e padre Leocir Pessini (ou, como é mais conhecido, padre Léo Pessini) é um dos bioeticistas brasileiros mais conhecidos e respeitados, além de nome sempre lembrado pelos jornalistas, por ocasião de entrevistas sobre um tema delicado: a distanásia (termo que, segundo dicionário Aurélio, corresponde à morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento). Neste assunto, a propósito, tornou-se uma espécie de referência mesmo antes de publicar o livro Distanásia, até quando prolongar à vida, no ano de 2001.
Aliás, a intimidade com o tema vem de longe, 1982– época em que começou a atuar como capelão no Hospital das Clínicas de São Paulo, atividade que exerceu durante 13 anos – “quando viveu e conviveu com as questões humanas desde o nascer até o morrer”, buscando sempre formas de “ajudar concretamente” as pessoas envolvidas no contexto de final de vida.
Além deste assunto, transita por vários outros no universo da Bioética, se demonstrando sempre aberto ao diálogo: tanto que, no VII Congresso Brasileiro de Bioética, realizado em São Paulo, atuou como moderador da conferência Cidadania no Século XXI, proferida pela professora espanhola Adela Cortina, e da mesa redonda Fundamentalismo em Bioética – uma das mais aguardadas do encontro –, ao lado do também espanhol Diego Gracia e do brasileiro Marco Segre.
Logo após esta participação, o Padre Léo gentilmente concordou em conceder entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp. A íntegra pode ser conferida a seguir:
Centro de Bioética – Sua carreira religiosa se iniciou antes da Bioética ou foi o contrário?
Padre Léo Pessini – A Bioética chegou à minha vida a partir do trabalho de acompanhamento pastoral, psicológico e espiritual, junto a pacientes, familiares e profissionais, como capelão do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Prestei este tipo de apoio por 13 anos, convivendo com as questões humanas desde o nascer até o morrer.
Nesta época, era recém-formado em filosofia e teologia, e acabei fazendo, como pós-graduação, Counseling em Bioética nos EUA, mas precisamente em Milwaukee (WI), já que, quando eu entrei em contato com o drama humano, minha filosofia e a minha teologia ficaram “na saudade”: queria encontrar uma forma de ajudar concretamente as pessoas envolvidas em processos de final de vida.
Apelei à psicologia e à Bioética, além da espiritualidade e da racionalidade, para achar ferramentas capazes de me orientar.
Cbio – Em seus livros e artigos, o senhor constantemente aborda a distanásia, ortotanásia, enfim, temas de final de vida. Por que estes assuntos sempre exerceram atração?
Padre Léo – Porque, em meu trabalho, as questões mais angustiantes estavam ligadas ao pronto-socorro; à UTI; ao velório; ao pós-morte... O final da vida humana se apresentava como um mistério, um grande desafio, o que me obrigou a buscar as razões da minha esperança.
Por conta disso, acabei produzindo textos sobre a dignidade humana nos limites da vida, em que reflito a respeito de tais questões “de fronteira”, como as que se referem a distanásia, prolongamento indevido do morrer.
Sabemos que pessoas, muitas vezes, optam por desistir de viver, mas creio que não devamos nem abreviar a vida, nem prolongar e, sim, humanizar e cuidar.
Cbio – Os católicos entendem a morte de maneira equivocada? Há os que defendem a manutenção da vida em qualquer circunstância, custe o que custar...
Padre Léo – Sim, há interpretação errada a respeito do momento da morte. Trata-se de uma mentalidade vinda do que poderíamos chamar de um “catolicismo conservador institucionalizado” historicamente, que não corresponde à essência da mensagem cristã.
Não nascemos e vivemos para sofrer e, sim, para amarmos e sermos felizes. Essa é a essência da “boa nova” do Evangelho.
No Ocidente, o medo da morte foi incentivado pela disseminação do pensamento que entende o momento do morrer como aquele em que você se encontra com Deus, um juiz extremamente severo que pretende julgar você a partir das suas dívidas e faltas, e não a partir do amor que você espalhou e da obra que realizou.
A partir do momento em que substituirmos esse Deus policial e castigador por outro mais amigo e amoroso, o medo tende a desaparecer. Conviveremos com a morte com maior conforto e serenidade – e não com tanta angústia.
A hora da despedida é única na vida de cada pessoa. Aqui, os valores e a fé são fundamentais para dar um sentido à nossa existência: nos levam a crer que a vida não acaba, proporcionam uma dimensão de realização plena e total no céu, junto de Deus.
Por mais avanço tecno-científico que tivermos pela frente, este jamais conseguirá dar sentido à vida humana. O campo da ciência é descrever, classificar e interpretar fatos e fenômenos da natureza, mas não é tarefa dela por exemplo “dar as razões de nossa Esperança”. Aqui entramos no campo dos valores humanos, âmbito da ética, Bioética e do mundo das religiões.
Cbio – Médicos cristãos podem ficar em dúvida de que se, ao deixarem de investir em tratamentos a um determinado doente, estariam contrariando as leis divinas.
Padre Léo – Cabe ao profissional médico se ater aos dados científicos. São a razão e o conhecimento técno-científico que o orientarão se deverá deixar de insistir em um tratamento, naquele momento histórico e circunstância particular. Enfim, o julgamento de intervir ou não deveria se basear, acima de tudo, em diagnóstico e prognóstico.
Cbio – Mas os Católicos falam em milagre...
Padre Léo – Ninguém está proibido de esperar milagres. Só que os milagres são lá, com Deus, não com a gente. Sempre digo que a verdade dos fatos é muito importante: o profissional médico deveria levá-la sempre em conta, em vez de ampliar a área da ilusão, da recuperação impossível, do milagre – quando os fatos mostram o contrário.
Não posso alimentar a ilusão, da mesma forma que também não posso acabar com a esperança do doente e de seus familiares. Mantemos a esperança das pessoas, por exemplo, quando permanecemos ao lado delas momento da dor e da perda.
Neste sentido, sinceramente gostaria de ver mais médicos e profissionais da saúde nos velórios, junto com os familiares. Em geral, os profissionais cuidam dos seus pacientes durante três, quatro meses, e, de repente, acabam com o vínculo justamente nos momentos em que os familiares mais necessitam, que são o da dor e o da morte.
E por quê? Por conta do sentimento do fracasso, do “não ter conseguido curar”, que é desnecessário: não somos Deuses.
Cbio – Os médicos poderiam argumentar que é humanamente difícil encarar os familiares, admitir que perderam a “guerra” contra a morte.
Padre Léo – Claro. É difícil enfrentar o sentimento da perda, do fracasso, do “eu fui o profissional encarregado da cura e aconteceu a morte”. Mas veja bem, trata-se de uma contingência de ofício: assim como se cobra do médico a cura, do padre se espera o milagre.
Quantas vezes nos dizem: “padre, rezei tanto, mas Deus se esqueceu de mim... Não acredito mais nesse Deus”. Só que eu me controlo e não abandono a pessoa na hora em que precisa desabafar, falar alto. O mundo está sendo muito duro com ela naquela fase! Quando chegam as perdas, a solidariedade e a compaixão são as maiores fontes de esperança.
Cbio – Mudando de assunto, na mesa redonda sobre Fundamentalismo em Bioética, o senhor mencionou algo como “a dignidade humana não vem de Deus, é um atributo construído”. A dignidade não é um valor inerente ao ser humano?
Padre Léo – Não foi bem isso o que eu quis dizer e, sim, que o conceito de dignidade humana, ao longo da história, foi construído de forma muito sofrida. Trata-se de uma conquista humana.
Creio, sim, que a dignidade seja inerente ao ser humano, pelo simples fato de o ser humano ser “ser humano”, ser “pessoa”. Não é atributo acidental, vindo de fora para dentro.
As religiões são fonte de afirmação da dignidade humana. A tradição judaico-cristã, por exemplo, nos diz que a fonte desta dignidade deve-se ao fato de sermos “imagem e semelhança de Deus”. Não é lindo isto?
Cbio – É exatamente o contrário do que a bioeticista americana Ruth Macklin afirmou, em 2003, em editorial do British Medical Journal. Segundo ela, “a dignidade é um conceito inútil”.
Padre Léo – Eu não jogaria no lixo um conceito que a humanidade levou séculos para construir e reconhecer, como fez esta bioeticista. Sim, a dignidade precisa ser reconhecida, mas é intrínseca ao ser humano. Não a perdemos pelo fato de, por exemplo, nos tornarmos indivíduos com deficiência.
Quanto mais eu envelheço, mais perco meus movimentos, talvez minha consciência. Por isso, viro um indigno?
Hoje, a ideologia comum vincula a dignidade ao conceito de qualidade da vida – que, no fim, é um conceito seletivo que privilegia os mais fortes; os mais novos; os mais hábeis, colocando na marginalidade justamente aqueles que mais carecem de cuidados. No fundo, isso é uma enorme injustiça.
Cbio – Há correntes de bioeticistas, como a de utilitaristas, que consideram as questões da vida e da dignidade humana como relativas.
Padre Léo – Pois é... Tenho muitos amigos utilitaristas, mas fico curioso em saber o que um utilitarista faria com a mãe dele de 85 anos, em coma, que deixou expressado o desejo de permanecer viva....
Não acho que o que define a vida seja o utilitarismo, nem mesmo a autonomia. É a solidariedade. Brigo muito por isso, considero o cuidado como algo muito mais básico e fundamental, por nos possibilitar condições de existência. Como fomos cuidados para nascer, precisamos também de cuidados ao nos despedir da vida
Cbio – Em uma de suas explanações aqui no Congresso, o senhor disse que “existem questões nas quais os bioeticistas não deveriam se dividir”. Não é justamente a multiplicidade de opiniões que caracteriza o pensamento bioético?
Padre Léo – Chamei a atenção para a questão da responsabilidade do profissional da ética.
Em primeiro lugar, não pode alimentar o fundamentalismo. Veja bem, embora contemos com salutares diversidades de pensamento; de valores; de visões, não podemos chegar divididos ou isolados em certas questões urgentes. Por exemplo, quando se trata dos dilemas vinculados à vida humana; aos direitos humanos; à dignidade dos mais vulnerabilizados, precisamos caminhar para a mesma direção.
A diversidade de valores é salutar. Diversidade de valores que não afirma a vida, os direitos humanos e a dignidade humana, facilmente tem um ingrediente fundamentalista que deve ser combatido. Como poderíamos conviver sendo não apenas “estranhos morais” na expressão de Engelhardt, mas “inimigos mortais”?
Cbio – Então foi isso que o senhor quis dizer ao afirmar “que a bioética é a vacina contra o fundamentalismo”.
Padre Léo – Sim, essa Bioética que apregoa uma visão crítica de valores.
Defino a essência da Bioética como um grito por dignidade de vida, que sempre vai se pautar por dois valores: de um lado está a ousadia do conhecimento científico, que inova, que transforma, que aperfeiçoa, que transforma a vida em mais bela, mais saudável, menos enferma e menos sofrida. Do outro lado fica a prudência de fazer com que a mesma vida não seja manipulada, não seja descartada, nem “cobaizada”.
Uma Bioética capaz de implementar diálogo, uma sabedoria capaz de proporcionar o equilíbrio entre prudência e a ousadia.
Mais ensinamentos do Padre Léo:
Sobre final de vida
- Quanto mais de ponta for a instituição de saúde, tanto mais possível e sofisticada pode ser a distanásia (no artigo “Distanásia: Até quando investir sem agredir?”)
- O conhecimento biológico e as destrezas tecnológicas serviram para tornar nosso morrer mais problemático; difícil de prever, mais ainda de lidar, fonte de complicados dilemas éticos e escolhas dificílimas, geradoras de angústia, ambivalência e incertezas (no artigo “Distanásia: Até quando investir sem agredir?”)
- Se o objetivo primeiro da Medicina é a preservação da saúde, a morte deveria ser entendida e esperada como último resultado deste esforço, implícito e inerente desde o começo (no artigo “Distanásia: Até quando investir sem agredir?”)
Sofrimento
- Passamos por uma profunda crise de humanismo. Falamos insistentemente de ambientes desumanizados, tecnicamente perfeitos, mas sem alma e ternura humana. (no artigo Humanização da Dor e Sofrimento Humanos no Contexto Hospitalar)
- A pessoa humana vulnerabilizada pela doença deixou de ser o centro das atenções e passou a ser instrumentalizada, em função de determinado fim, podendo ser transformada em objeto de aprendizado, o status do pesquisador, ou ser cobaia de pesquisa, só para citar algumas situações (...) (no artigo Humanização da Dor e Sofrimento Humanos no Contexto Hospitalar)
- Nem sempre quem está sentindo dor está sofrendo. O sofrimento é uma questão subjetiva e está mais ligado aos valores da pessoa (no artigo Humanização da Dor e Sofrimento Humanos no Contexto Hospitalar)
Bioética
- Definiria a Bioética como um grito, um brado forte pela dignidade humana e por mais qualidade de vida, desde o nível individual, pessoal ou até ao nível social, coletivo em todos os âmbitos da vida (em entrevista ao site Revelação on Line, da Universidade de Uberaba/Uniube)
Manipulação de embriões
- (...) Na questão do embrião humano frisamos: não é “coisa” (...) A gente tem que evitar justamente que, de repente, se caia numa situação em que as coisas acabam sendo sacralizadas e as vidas coisificadas (em entrevista ao site Revelação on Line, da Universidade de Uberaba/Uniube)
* O Padre Leocir Pessini é superintendente da União Social Camiliana e vice-reitor do Centro Universitário São Camilo. É professor doutor em Teologia Moral, pós-graduado em Clínica Pastoral Education and Bioethics pelo ST. Luke’s Medical Center, em Milwaukee (EUA). Autor de vários livros, como “Distanásia, até quando prolongar a vida?” e “Problemas atuais de Bioética”, (com o padre Christian de Paul de Barchifontaine), ambos publicados pela Ed. Loyola e Centro Universitário São Camilo, além de artigos, como A eutanásia na visão das grandes religiões mundiais e Bioethics Power and Injustice: Some Personal Thoughts from a Latin American Perspective
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