O que faz exatamente um Consultor em Bioética da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)?
Em teoria, a tarefa de consultor da Unesco para esta área (e as demais) em Saúde consiste em desenvolver linhas de ação a serem submetidas aos estados-membros, em conferência- geral que acontece a cada dois anos. Se aprovadas, tais idéias pautarão as prioridades dos governos e determinarão as atividades a serem implementadas.
Porém, se a resposta fosse baseada somente no perfil da médica intensivista Susana Vidal, consultora do Programa de Bioética para a América Latina e Caribe da Unesco, certamente envolveria bastante trabalho e empenho. “Na verdade, dedico muito mais tempo às minhas tarefas como especialista na organização e a outras demandas profissionais, do que à vida pessoal... Mas essa é uma forma de viver, e assim tem sido desde que era muito jovem”, reconhece, sem qualquer sinal de amargura, a simpática argentina, durante entrevista exclusiva concedida ao Centro de Bioética do Cremesp.
Confirmando seu estilo executivo de ser, Susana precisou remarcar algumas vezes este bate-papo no decorrer do VIII Congresso Brasileiro de Bioética, realizado em Búzios, Rio de Janeiro, de tão concentrada nas atividades do evento, que incluíram participações em mesas-redondas sobre temas como Nova Declaração de Helsinque e Educação em Bioética – em especial, o Programa de Educação Permanente da Redbbioética/Unesco, do qual é coordenadora geral, além de responsável pelo desenho, definição e elaboração dos conteúdos dos cursos.
Finalmente, a conversa aconteceu nos dias que se seguiram ao Congresso. Confira os principais tópicos abaixo:
Centro de Bioética – Fale-nos sobre sua trajetória profissional e o porquê de escolher a Bioética como principal área de ação.
Susana Vidal – Formei-me em Medicina há 26 anos, tendo atuado durante vários em cuidados intensivos em um hospital-geral de Córdoba, Argentina. Foi nesta época que me caiu nas mãos um exemplar de um número especial sobre Bioética da revista da Organização Pan-americana da Saúde (OPAS). Fiquei tão interessada que, depois, viria a me especializar e fazer mestrado no assunto na Universidade do Chile.
Em 1992, quando já trabalhava para o Ministério da Saúde de meu país, iniciei minhas atividades em Educação Permanente em Saúde – e é claro que tinha de incluir os temas da Bioética nos conteúdos dirigidos aos profissionais. Quatro anos depois me designaram como coordenadora da área de Bioética do Ministério e, a partir de 2001, tornei-me coordenadora da Comissão Provincial de Bioética de Córdoba, em virtude de projeto para a criação de um sistema de avaliação ética de pesquisas biomédicas.
Cheguei em 2003 à Redbioética /Unesco, da qual faço parte do Conselho Diretor, e para a qual desenvolvi o Programa de Educação Permanente em Bioética. Além disso, hoje tenho ao meu encargo o programa para a América Latina e o Caribe de Bioética e Ética da Ciência, no setor de Ciências Sociais e Humanas da Unesco.
É bastante trabalho, não?
Cbio – A senhora ocupa hoje o cargo de consultora da Unesco no Programa de Bioética. Qual é exatamente o seu trabalho?
Susana – A tarefa de consultoria é a de desenvolver as linhas de ação a serem submetidas em conferência geral da Unesco, que acontece a cada dois anos. Ali, os estados-membros definem as prioridades, com vistas a orientar os governos e determinar quais serão as atividades que devem ser desenvolvidas.
Cheguei ao cargo como uma proposta da Divisão de Ética e Ciência e Tecnologia da Unesco, em Paris, como resultado de minhas atividades na Redbioética Unesco, como o Programa de Educação Permanente em Bioética.
Cbio – Existem diferenças essenciais entre a chamada Bioética anglo-saxônica e a Bioética Latino-americana? Quais seriam as prioridades dos latinos?
Susana – A Bioética surgiu nos anos 60 e 70 como uma nova disciplina no marco da cultura norte-americana. Isto lhe deu um perfil particular, não só quanto à fundamentação, mas também em seu método e na definição do campo de estudos.
Deste modo, o chamado “modelo de princípios” se estendeu como fundamentação, de maneira hegemônica, em praticamente todo o mundo ocidental. Apesar disso, parte de iniciativas européias buscou retomar a raiz mais genuína da Bioética que se localiza no Código de Nuremberg e na Declaração Universal de Direitos Humanos.
Na América Latina foi desenvolvida uma série de iniciativas, com o objetivo de adequar a Bioética tanto aos modelos culturais locais como às problemáticas éticas que emergem das ciências da vida e da saúde.
Isso resultou em um particular desenvolvimento da Bioética entre os latinos, que tomam como marco de fundamentação os direitos humanos, ampliando o campo/objeto de estudo da Bioética aos problemas sociais e meio-ambientais dos indivíduos e das comunidades.
Essa diferença (entre Bioética anglo-saxônica e latina) interfere não somente no campo conceitual da ética, mas também no dia-a-dia das pessoas, já que tem conseqüências sobre as ações concretas dos indivíduos, das comunidades e dos estados.
Cbio – Alguns bioeticistas crêem que a bioética mais “popular”, a que aborda os quatro princípios, já não contempla todos os dilemas bioéticos. A senhora concorda?
Susana – A Bioética que herdamos, enraizada no modelo dos princípios e na cultura liberal norte-americana, restringiu seu campo a problemas éticos relacionados às novas intervenções tecnológicas nos corpos.
Ela supõe indivíduos sós, isolados, frente a um suposto desenvolvimento científico técnico, em um suposto exercício de sua autonomia – e não sujeitos sociais que vivem com outros. Não considera que a tecnologia faz parte da vida social em situações complexas e sempre atravessadas por realidades econômico-sociais e culturais.
Nos últimos anos temos trabalhado em uma redefinição do objeto de estudo da disciplina “Bioética”. Compreendemos ser necessário ampliar o campo de estudo, que supõe uma concepção ampla do conceito de saúde, isto é, saúde como bem-estar.
Nesta visão, os problemas éticos em saúde incluem uma larga lista de questões que focalizam os sujeitos de acordo com seus modos de vida, e levam em conta as necessidades humanas, não só as chamadas necessidades básicas, mas também aquelas necessárias para um pleno desenvolvimento das pessoas.
Cbio – Em uma das mesas do VIII Congresso Brasileiro de Bioética a senhora falou a respeito dos benefícios aos sujeitos de pesquisa no decorrer dos estudos. Que benefícios seriam esses?
Susana – No Congresso, tentei problematizar o conceito de “benefício” em investigação biomédica, e demonstrar como, a partir dos anos 90, a noção de benefício aparece em forma de compensações de diversos tipos aos sujeitos de pesquisa, em troca de sua exposição aos riscos.
Esta noção de “compensação” está impressa em toda definição de exploração que se tem tentado implementar em foros internacionais de debate.
Apesar disso, diversos autores têm proposto uma revisão no conceito de exploração, como podemos observar, por exemplo, nas recomendações da Comissão Nacional de Bioética dos EUA (NBAC, ou National Bioethics Advisory Commission).
Dentro desta perspectiva, não existe exploração quando uma empresa poderosa tira proveito, em seu próprio benefício, de uma ou mais pessoas ou comunidades vulneráveis se existe uma compensação adequada a estes indivíduos, como parte da relação contratual pré-estabelecida.
Os bens que se recebem de acordo com o critério de compensação se denominam benefícios. Como exemplo, poderíamos dizer que um sujeito de pesquisa portador de uma patologia que recebe placebo por estar em um determinado braço de pesquisa não estaria sendo explorado se recebesse algum tipo de compensação.
Como se pode observar, a compensação não é igual à natureza do risco a que se expõem os sujeitos. Logo, os sujeitos são instrumentalizados de acordo com o objetivo da pesquisa.
Defendemos, então, que tal posição se ampara em um equivocado modelo liberal minimalista e reducionista, que entende a pesquisa biomédica como uma relação contratual entre partes iguais.
Um contrato, um documento assim, conseguiria avalizar situações que são claramente de exploração.
Cbio – Em outro debate a senhora falou sobre o Programa de Educação Permanente em Bioética, oferecido pela Unesco. Eu que modelo ele é baseado?
Susana – Em minha apresentação fiz referência ao chamado modelo de educação permanente ou educação problematizadora em Bioética, metodologia que se emprega no Programa de Educação Permanente em Bioética, baseada numa concepção diferente sobre os sujeitos e o processo de ensino e de aprendizagem.
O modelo que estamos propondo é aberto e, portanto, promove a capacidade de diálogo dos sujeitos, seu espírito criativo e de busca, em especial, sua capacidade reflexiva e problematizadora.
Tratamos de desenvolver uma estratégia educativa que aponte para a reflexão crítica dos problemas éticos em cada contexto, seguindo o modelo mayéutico (que se baseia na dialética, a qual supõe a idéia de que a verdade está oculta na mente de cada ser humano).
É o método da pergunta, da indagação sobre os saberes que os participantes trazem e que aponta para a mudança de atitudes dos alunos, e não a uma transmissão de conhecimentos, com a moralidade tradicional “doutrinadora”.
Cbio – É possível aprendermos “à distância” da forma proposta?
Susana – A educação à distância em Bioética não conta, para mim, com uma distinção especial.
Esta modalidade de aula virtual oferece um foro de debate com a participação dos alunos, que é para nós o espaço mais importante da ação educativa do curso à distância.
Neste momento estamos realizando a quarta versão dos cursos do Programa de Educación en Bioetica (PEPB) e já passaram pelas aulas cerca de 700 alunos de toda América Latina e Caribe (mais informações em www.redbioetica-edu.com.ar).
Cbio – A senhora compactua com a idéia de uma Bioética de intervenção, como defende o professor Volnei Garrafa?
Susana – A Bioética é uma ética aplicada. De acordo com esta perspectiva, não é possível entender a análise dos problemas éticos da vida e da saúde se não for como campo dos contextos e práticas.
Ao mesmo tempo, isso supõe uma visualização do horizonte moral, isto é, a definição de uma Bioética que existe entre uma realidade dada e a forma com que essa mesma realidade deveria ser.
Desta maneira, como bem recorda Adela Cortina (filósofa e professora espanhola), a ética tem três metas fundamentais: 1) fazer parte da realidade, isto significa, compreender a situação perante a qual estamos; 2) responsabilizar-se por ela, isto é, tomar as decisões necessárias no momento oportuno; 3) encarregar-se dela, para que a realidade seja como deve ser. É exatamente neste momento é que acontece a tarefa transformadora da Bioética.
Não se trata então só de uma reflexão e uma deliberação sobre os problemas éticos, senão também de uma forma de visualizar os caminhos de transformação.
Cbio – Qual é o tema mais urgente a ser incluído e/ou debatido na agenda dos bioeticistas?
Susana – As urgências devem ser definidas de acordo cada lugar e contexto, de acordo com um diagnóstico pormenorizado de cada situação.
Creio que as comissões nacionais de Bioética cumprem um papel fundamental neste sentido, pois são órgãos independentes que deveriam estabelecer a agenda bioética para cada país, e as formas de aplicação dessa agenda. Os comitês e comissões institucionais de Bioética precisam também cumprir esta missão, não se mantendo apenas à espera de serem consultados sobre os temas, mas indagar a realidade e antecipar-se a ela.
De qualquer maneira, o importante é ter uma estratégia de abordagem dos temas – e não fazer uma lista de temas, excluindo outros. O que muda é o olhar e não a restrição do campo/objeto de estudo da Bioética.
Somente para citar alguns, temos temas urgentes, como a ética em pesquisa biomédica, que envolve direitos humanos fundamentais, bem como, as questões relativas à pobreza, à exclusão e à marginalidade, além de o acesso efetivo aos serviços de saúde e aos medicamentos.
Não podemos também deixar de fora da agenda temas emergentes, isto é, nos eximir das discussões sobre novas tecnologias, como, por exemplo, as “nanomedicinas”, porque sua aplicação abarca benefícios e riscos em pesquisas que, um dia, podem acontecer em nossas regiões.
Cbio – Sua rotina parece ser bastante corrida. Como divide seu tempo entre as questões da Unesco e sua vida profissional e pessoal? Vale a pena dedicar tanto tempo às causas da Bioética?
Susana – Direciono muito tempo ao meu trabalho, que inclui as atividades profissionais e a consultoria na Unesco. Assim, para dizer a verdade, creio que trabalho mais do que me dedico à vida pessoal, mas essa é uma forma de viver, e assim tem sido desde que era muito jovem.
A Bioética é, em algum sentido e como eu a entendo, um programa de reforma social, uma maneira de transformar a realidade para “que ela seja como deve ser” (diz Cortina). É uma ferramenta, uma maneira de avançar na construção de um pouco mais digno e um pouco mais justo. Então, em certa medida, trabalhar em Bioética é uma forma de participação ativa.
Vale à pena trabalhar e investir o nosso esforço e a nossa paixão em coisas que caminham neste sentido? Claro!
Para aquele que nunca perderam a esperança e os sonhos em um mundo melhor, é sempre possível dizer que vale a pena....
Escocês aconselha: "Os médicos devem aprender a ouvir o próprio coração"
Veja aqui um resumo do evento que trouxe ao Brasil os experts em Bioética
Na verdade, o filósofo australiano é um ferrenho defensor dos direitos dos "não-humanos"
Médico católico sai em defesa dos embriões
Filósofa americana aborda a exploração contra as mulheres; duplo standart e paternalismo
Boa Morte não tem nada a ver com Eutanásia, diz o professor americano
Alastair Campbell, H. Tristram Engelhardt Jr e Márcio Fabri dos Anjos falam sobre essa delicada relação
Especialista holandês indica falhas nos critérios legais adotados em seu país
Esta página teve 2532 acessos.