23-09-2010

Todos os vulneráveis merecem proteção?

Pesquisador da Fiocruz fala sobre uma Bioética destinada aos incapazes de exercer autonomia plena


Todos os vulneráveis merecem proteção?

Partindo-se do princípio de que todos os humanos, como mortais, são vulneráveis, é claro que necessitam ser amparados em alguma(s) fase(s) da vida.

Porém, não é a este universo ao qual se dedica a Bioética da Proteção, e, sim, à população de vulnerados “os feridos, no amplo sentido da palavra, não apenas os expostos à condição de vulnerabilidade” explica o professor Fermin Roland Schramm, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que há anos estuda o tema com o também professor e bioeticista chileno Miguel Kottow.

Conforme explicou durante o VIII Congresso Brasileiro de Bioética, realizado em Búzios, Rio de Janeiro, a Bioética da Proteção se aplica aos sujeitos e às populações desprovidos das condições mínimas para cuidarem sozinhos das próprias vidas. Aqueles que não são plenamente autônomos, já que não contam com recursos necessários para exercer a autonomia plena.

No entanto, ao contrário do que possa parecer, ao apoiar tais pessoas, não estará sendo exercido o paternalismo – visto com grandes ressalvas por parte dos bioeticistas. “Os sujeitos podem recusar as medidas protetoras”, esclarece, em entrevista exclusiva concedida ao site do Centro de Bioética do Cremesp, no intervalo do evento no qual participou de várias atividades relacionadas à Bioética, Biopolítica e Biopoder e ao Poder do Diálogo de Pessoas Comuns, entre outras.

Vale à pena conhecer um pouco mais do pensamento do – simpático e carismático – professor suíço, que já trabalhou na África e escolheu o Brasil como lar.  Confira!

 

 


Fermin Roland Schramm

Centro de Bioética – Quando o senhor começou a se interessar pelo estudo da Ética e da Bioética? Como foi este “encontro”? 

Fermin Roland Schramm – Durante minha formação universitária na Suíça, país em que nasci, optei por estudar Letras, Filosofia e Linguística, trabalhando depois como professor de Semiótica (ciência da linguagem que opera com a articulação dos signos verbais) em uma faculdade de arquitetura, onde me interessei por questões estéticas.

Na época, a ética não era uma coisa bem vista: éramos todos filhos de 1968, leitores de Nietzsche (Friedrich Wilhelm Nietzsche, influente filósofo alemão do século XIX), e a ética era vista como algo “moralista” – ou moralina, termo nietzschiano para referir-se aos aspectos deficientes da moral.

Na verdade, o preconceito contra a ética e a moral fazia parte da cultura dominante da extrema esquerda. Continuo da esquerda, mas de outra maneira, já que penso que a direita mantém a arrogância dos privilégios.

De qualquer forma, quando deixei a Suíça e fui para a África trabalhar para a Organização das Nações Unidas (ONU), vi uma série de coisas, li determinados textos e comecei a me interessar por questões ambientais. A partir de então perdi o preconceito contra a ética e a moral, apesar de, essencialmente, continuar a dar aulas de epistemologia e estética.

A Bioética era uma reformulação da ética a partir de problemas distintos que existiam naquela época. Ia além da questão formal da ética, conhecida como “metaética” (estudo dos aspectos lógicos de um discurso ou tratado moral). Propunha-se, enfim, a ser de fato uma ética aplicada.

Acabei ficando definitivamente neste campo.

Cbio – O senhor vincula a Bioética à questão da saúde pública?

Schramm – Claro! No Brasil, a Bioética surge a partir não tanto de questões biomédicas tradicionais, mas adquire sua identidade quando começa a ser vinculada a problemas de saúde pública.

Cbio – Isso acontece apenas no Brasil ou em toda a América latina?

Schramm – Falaria no Brasil, porque não gosto de generalizar.

Talvez sim, parece que a Bioética latino-americana carrega uma característica sanitária – e o mesmo valha para o Chile, a Argentina – mas isso é “achismo”, até porque não fiz nenhuma pesquisa científica para verificar o que ocorre na Colômbia, na Venezuela, no México...

Mas, de fato, no Brasil muitos problemas se relacionam à alocação de recursos e à exclusão, apesar de termos uma legislação maravilhosa, que hoje é copiada até pelos norte-americanos: parece que o Obama (Barack, presidente dos EUA) foi aluno de uma escola de Saúde Pública!

É consciente de que precisa fazer algo para incluir os 50 milhões de desassistidos da Saúde: os miseráveis estão protegidos, mas a classe média baixa está completamente descoberta.
 
Cbio – O senhor trabalha hoje o modelo bioético da Proteção. Concorda com o ponto de vista de alguns especialistas de que a chamada Bioética Principialista, proposta por Beauchamp e Childress, está ultrapassada?

Schramm – Espere aí... Calma!

Em um livro de Marco Segre (professor emérito da USP) me refiro ao Principialismo (modelo baseado nos princípios da Autonomia, Não-Maleficência, Beneficência e Justiça) como algo bastante bom, sobretudo, na formação dos alunos e para resolver determinados problemas biomédicos típicos, como, por exemplo, os que envolvem a relação médico-paciente.

Desculpe-me o trocadilho, mas não sou antiprincipialista por princípio. Só acho que o modelo é limitado e se demonstra complicado quando aplicado a determinadas situações. Por exemplo, como atribuir “autonomia” a alguém que não conta com condições mínimas de sobrevivência?

O modelo bioético do Principialismo, ou Georgetown standard, pode até funcionar em uma sociedade de iguais como tenta ser a dos EUA, onde os cidadãos possuem mais ou menos o mesmo padrão de vida – apesar de eu ter acabado de mencionar os 50 milhões de desassistidos pela Saúde.

Aqui em nosso país, marcado por profundas desigualdades, o quadro é diferente: há os “caras” que não têm absolutamente nada, a não ser suas vidas nuas, e aqueles que têm tudo.

Cbio – Do que trata a Bioética da Proteção?

Schramm – Na verdade, este assunto é trabalhado por mim e pelo professor Miguel Kottow, com quem fiz meu pós-doutorado no Chile. Certamente trabalhamos o mesmo assunto, apesar de termos algumas divergências.

Por exemplo, eu chamo o modelo de “Bioética da Proteção”; ele, de “Ética da Proteção”. 

Para mim é a mesma coisa, mas para ele, são coisas diferentes.

De qualquer maneira, a Bioética da Proteção (ou Ética da Proteção) corresponde a um instrumento reflexivo que parte da constatação e da análise da assimetria entre cidadãos.

Não se aplica àqueles que têm condições para viver sua vida, tomar as suas próprias decisões; àqueles que são competentes materialmente, cognitivamente, moralmente; que, enfim, não precisam ter um Estado paternalista por trás para dizer o que é bem e o que é mal.

A Bioética da Proteção se dedica aos sujeitos e às populações que não contam, por exemplo, com acesso aos serviços de saúde; que vivem na miséria; aos meninos que vivem nas ruas etc, e que, portanto, deveriam ser apoiados pelo Estado e pela sociedade organizada.

Quero dizer, é uma Bioética para os pobres e miseráveis, os desprotegidos, os desamparados, e se e relaciona à carência de recursos em vários níveis, como econômicos, financeiros e até existenciais.

Por exemplo, uma mulher agredida pelo marido que não tem condições de se revoltar é vulnerada.

Cbio – Vulnerável?

Schramm – Isso é importante: faço uma distinção. A Bioética da Proteção se dirige a população de vulnerados.

Vulneráveis, somos todos. Como humanos e mortais, passamos pela condição de vulnerabilidade, mas nem todos são vulnerados.

Eu e você, por exemplo, não somos vulnerados, ao contrário dos efetivamente afetados e feridos, no sentido amplo da palavra.

Cbio – Essa “proteção” à qual o senhor se refere não seria uma expressão do paternalismo? Hoje, a palavra “paternalismo” é considera por alguns bioeticistas quase como um palavrão...

Schramm – Não, não, não!

Diferentemente do paternalismo, as medidas protetoras são ofertadas – e a pessoa vulnerada pode aceitá-las ou não.

Vou lhe dar um exemplo: nos anos 70, quando eu estava em Paris fazendo pós-doutorado, conheci alguns moradores de rua, os famosos clochards, com quem, de vez em quando, bebia um vinho. Entre eles estava o filho de uma família rica, que se revoltou e decidiu viver debaixo das pontes.

Ele e outros diziam coisas como “não preciso de nada disso, sou contra o Estado, contra a Burguesia”.

Eram miseráveis, mas eram vulnerados?  Não! Escolheram a própria vulneração.

Em uma situação dessas, jamais poderiam ser ofertadas medidas protetoras, pois eles não as queriam, nem precisavam delas.

Já o paternalismo não dá ao sujeito ao qual se aplica a ação a opção escolher ou não. “É assim e acabou-se”.

Vulnerado pode aceitar ou não.

Cbio – Qual seria o papel do bioeticista em um contexto de vulneração? Orientar a sociedade e o governo quanto à necessidade de medidas protetoras?

Schramm – Em primeiro lugar, devemos proceder à análise ao lado de outros cientistas, sanitaristas, sociólogos, etc  etc. Realizar tudo aquilo que é necessário para fazermos jus aos nossos salários como pesquisadores e professores, ou seja, descrever uma determinada situação específica; observar quais são as características das populações que vivem nela; e se, de fato, existem sinais de desproteção, de desamparo, ou de vulneração.

Depois desse momento descritivo passamos ao segundo, que é normativo. A Bioética é normativa, não é só uma epistemologia (ramo da filosofia interessada na investigação da natureza, fontes e validade do conhecimento).

Envolvendo tais populações de vulnerados há ainda uma terceira dimensão bioética que é a protetora, de dar amparo a esses desempoderados, despossuídos, vulnerados.

Cbio – A Bioética da Proteção é política ou apolítica?

Schramm – Creio que não seja essa a questão. É claro que a Bioética da Proteção abrange desdobramentos políticos, mas trata-se de uma ética – que provém do grego “ethos”, dispositivo que protege as pessoas, mas que dá lugar à conflituosidade.

É uma ferramenta bioética cujo papel é dar amparo àqueles que não conseguem se manter sozinhos.

Cbio – O professor Kottow não acredita em uma Bioética intervencionista, mais política, como quer a Cátedra Unesco de Bioética.

Schramm – Ele acha que é preciso distinguir ética e política. Na verdade, Kottow não é só pela distinção, mas pela separação, porque crê que a ética seria instrumento da filosofia, não da política.

Concordo que a ética não é a política, e a política não é a ética, e que, entre elas, há um campo de tensão. Só que existem, sim, interfaces entre ambas – e isso faz parte da tradição da ética desde Aristóteles, quando o que importava não era o indivíduo, porque não existia o conceito de indivíduo, surgido a posteriori. Havia o conceito de cidadão.

É claro que na Grécia havia um monte de gente excluída: as mulheres e boa parte da população não era cidadã e não tomava as decisões na polis (entendida como a comunidade organizada, formada pelos homens nascidos no solo da Cidade, livres e iguais).

Mas desde então o elemento político estava vinculado ao elemento ético. Era indissociável. Depois, com a complexificação do campo, de fato, foram se distinguindo.

A ética vai ter que estabelecer alguma interface com a política, inclusive em relação aos efeitos biopolíticos. Mas aí precisaremos de toda uma nova entrevista para falar tudo isso...

Cbio – Que referenciais teóricos foram usados para se desenvolver a Bioética da Proteção?

Schramm – Tem um pouco de Lévinas (Emmanuel Lévinas, filósofo francês, cuja obra alerta sobre a emergência ética de se repensar os caminhos da filosofia a partir de um novo prisma: de se partir do Eu, em direção ao Outro).

Com os meus alunos, trabalho com pelo menos dois outros filósofos importantes. Um deles é Jonas (Hans Jonas, filósofo alemão contemporâneo, que defende uma nova ordem ética à qual dá o nome de Princípio da Responsabilidade) e o outro é Dérrida (Jacques Dérrida, argelino que foi um dos mais importantes filósofos do pós-estruturalismo e pós-modernismo).

Dérrida diz que a cidadania mundial mencionada por Kant (Immanuel Kant, alemão considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna) é limitada, porque não explica o que fazer com os sem-tetos, os sem-nada, os não cidadãos...  

Quero dizer, volta a uma discussão muito antiga que já existia na Grécia antiga, na época de Aristóteles.

Cbio – Atualmente, em termos de Brasil, qual é o tema mais importante na agenda bioética?

Schramm – Sem dúvida nenhuma, continua sendo essa questão dos vulnerados, apesar de termos, pelo menos, teoricamente ou programaticamente, um sistema capaz de servir de modelo até para outras nações, mas que não é fato: contamos com leis maravilhosas e coisa e tal, mas a realidade são “outros 500”.

Precisamos, sim, resolver problemas antigos, relacionados à miséria, ao atraso, à pré-história de fato.

Porém, além deles, é preciso reconhecer que somos um país que não está fora do mundo e que, tanto quanto outros, vivencia os “problemas de fronteira”, como diz Berlinguer (Giovanni, bioeticista italiano), ligados aos avanços das biotecnologias. Aquele conjunto que chamo de biotecnociência, que envolve assuntos como células-tronco e nanotecnologia, ente outros temas.

O grande dilema é como abordar esses dois pólos diferentes, sem entrar no tipo de discussão, “ah, mas é mais importante evitar que se morra de fome do que esmerar-se em transplantes de coração”.

Isso é o fim da picada! Temos de abandonar esse dicotomismo simplório. É um insulto ao ser humano ficar de fora da discussão desses temas complexos.

Cbio – Realmente há muitas pessoas se indignam pelo fato de se discutirem células-tronco em um país que ainda sofre com a malária...

Schramm – É preciso discutir e resolver as duas coisas.

Espero que a bioética brasileira seja suficientemente desenvolvida, agora que já faz tempo que vem sendo trabalhada, e consiga sair desses dicotomismos usados como maneira de calar a boca do outro.

“Não venha querendo discutir essa historia aí, quando nós estamos tentando falar de outra coisa mais importante”.

Ninguém duvida que a fome seja o mais urgente, só que há tantos outros dilemas e problemas! Aliás, não há nenhuma razão para haver fome num país como o nosso, que poderia ser um celeiro para o planeta.

Cbio – É engraçado que o senhor se refere ao Brasil como “nosso país”. Já se considera um cidadão brasileiro?

Schramm – Na verdade, cheguei ao Brasil em 1983, depois, fui para a África, onde fiquei por quatro anos. Voltei em definitivo em 1989, quando entrei na Fiocruz. 

Acho que sou, sim, um cidadão brasileiro: minha filha mais nova nasceu aqui.  É um país muito hospedeiro. Apesar de seus “n” problemas que me dão nos nervos, há pontos que me fazem sentir à vontade, acolhido.

Sempre fui bem tratado, bem recebido aqui. Não sei se outras pessoas concordam: Shakespeare já dizia, fale em seu nome e eu acreditarei em você.

Uma coisa que eu adoro nessa cultura é esse conceito de antropofagia cultural. Quero dizer, essa capacidade, de fato, de integrar, de incluir na caixa de ferramentas coisas vindas de outros lugares, sem nenhum preconceito.


Mais pensamentos do professor Schramm

•    Costumo utilizar uma definição de Bioética como o estudo da moralidade dos atos humanos sobre o “mundo vital”, com efeitos significativos e irreversíveis sobre sua auto-organização, sendo que o contexto da moralidade de tais atos sempre se dá em situações de conflitos de interesses e de valores. (Informe Ensp, site da Agência Fiocruz)

•    A questão é que a tarefa protetora não é aceita por todos os bioeticistas, sobretudo por aqueles que confundem “proteção” e “paternalismo”. (Informe Ensp, site da Agência Fiocruz)

•    A Bioética, como a ética em geral, precisa de uma estrutura do tipo agente-paciente, ou agente-afetado, ou seja, de uma estrutura de uma estrutura eu-outro ou eu-tu. “Eu” sendo sempre o agente ou autor do ato e o “Outro”, podendo ser um ser humano ou não.  (Informe Ensp, site da Agência Fiocruz)

•    Na saúde coletiva, mas também na saúde individual, que é o correlato da primeira, a bioética aborda a moralidade das políticas de saúde, isto é, as questões com fortes implicações morais que dizem respeito ao delineamento de políticas sanitárias justas. (Informe Ensp, site da Agência Fiocruz)


* Fermin Roland Schramm é pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e Consultor em Bioética do Instituto Nacional do Câncer. É autor de vários artigos como A moralidade da prática de pesquisa nas ciências sociais: aspectos epistemológicos e éticos; A questão da definição de morte na eutanásia e no suicídio assistido e Principios bioéticos em salud publica, entre outros.


 

 

 


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