14-10-2011

Detalhes éticos merecem tanta importância quanto tratamentos, em discussões clínicas

Bioética Clínica se vincula às decisões éticas a serem tomadas diante de situações clínicas concretas


Meu sonho é que, um dia, possamos discutir os detalhes éticos presentes no cuidado de cada paciente, da mesma forma com que falamos sobre que antibióticos e exames a serem adotados em determinado tratamento.

Este desejo foi esboçado pelo pediatra Gabriel Oselka,  que coordenou o Centro de Bioética do Cremesp (2002 a 2012), durante a 1° mesa redonda do I Congresso Brasileiro de Bioética Clínica, em 2011, que abordou o ensino dessa disciplina na Graduação da Medicina e, ainda, em Educação Continuada,  para equipes multidisciplinares do Programa Saúde da Família/PSF.

Ao que tudo indica Gabriel não está sozinho nesse desejo pela valorização dos debates sobre Bioética Clínica: apesar de ser considerado como atividade de pré-congresso do IX Congresso Brasileiro de Bioética Clínica (realizado de 7 a 10 de dezembro em Brasília, Distrito Federal) este evento não foi secundário, merecendo expressiva participação por parte dos congressistas e interessados tanto nas mesas redondas, quanto nas conferências e em câmaras técnicas de discussão de casos clínicos.

Bioética Clínica e Bioética em geral
Em síntese, a Bioética Clínica pode ser entendida como aquela que se vincula às decisões éticas a serem tomadas diante de situações clínicas concretas.

Esta, porém, não pode ser dissociada da Bioética em geral, pois “é a partir de tal encontro que é valorizado o fato clínico em si, permitindo que, ao final, consigamos decidir o que é o melhor para o nosso paciente”, opinou Roberto Luiz D’Ávila, presidente do CFM e também presidente do I Congresso de Bioética Clínica, que dividiu a mesa de abertura do encontro com os presidentes da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e do Congresso,  respectivamente, Paulo Fortes (gestão 2009 a 2011) e Volnei Garrafa (foto).

A relação clínica em tempos de globalização correspondeu à primeira conferência dos Congressos, tendo como palestrante Suzana Vidal, da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da UNESCO – RedBioética Uruguai/Argentina. 

Entre outros pontos, ela destacou que o termo “relação clínica” substituiu a designação “relação médico/paciente”, já que outros profissionais de saúde – e não apenas o médico – fazem parte da atenção aos doentes.

De qualquer maneira, enfatizou, a relação clínica passa atualmente por uma profunda crise, devida, em parte, à desconfiança do paciente em relação ao médico. Essa situação é agudizada por fatores como tecnização excessiva, mercatilização e judicialização da medicina. “Uma relação clínica deveria ser capaz de responder às necessidades humanas, como as de contar com excelência científica, sensibilidade moral, respeito às decisões dos pacientes e responsabilidade dos profissionais com a sociedade”.

 “Cuidado com o Caso”
Apesar de ter ganhado certo espaço nas últimas décadas, o ensino da Bioética ainda não atingiu inserção esperada no contexto geral das faculdades de Medicina, segundo o que foi depreendido da fala do pediatra Gabriel Oselka, na mesa específica sobre o assunto.

O coordenador do Centro de Bioética e professor da USP lembrou que, apesar de a discussão ética estar presente há tempos no âmbito das faculdades de Medicina – quando velhos professores defendiam a máxima be aware with the case, ou “tome cuidado com o caso”– a ênfase a tal debate teve altos e baixos ao longo da história.

“Se antes o ensino da ética e da Bioética era considerado por alguns como ‘perda de tempo’, com o passar dos anos, as universidades começaram a admitir a importância de estimular alunos de medicina a participarem das discussões. Porém, até hoje, não se pode dizer que seja um dos programas preferidos”, lamentou.

Em sua fala sobre educação continuada em Bioética Clínica no contexto do PSF, o médico Ademir Lopes Júnior, especialista em Medicina de Família, destacou que os temas capazes de suscitar as maiores dúvidas entre os profissionais e os atendidos pelo Programa abrangem sigilo das equipes relacionado ao prontuário médico e a responsabilidade do agente comunitário quanto à privacidade das informações dos atendidos.

Comitês de Bioética
Durante a mesa redonda Comitês de Bioética Como suporte às Decisões Clínicas, Bruna Pasqualini Genro, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, destacou que tais grupos, atualmente, não baseiam suas decisões apenas nos chamados “quatro princípios” bioéticos (Beneficência, Não-Maleficência, Autonomia e Justiça), mas também em outros, referentes à Alteridade (reconhecimento do outro); Direitos Humanos e a Ética das Virtudes (que inclui qualidades como benevolência, honestidade e coragem).

A presença dos Comitês de Bioética foi considerada pelo professor Andrés Peralta Cornielle, da República Dominicana, como “imprescindível” na realidade dos hospitais, em um momento “em que novas tecnologias trazem diversos problemas de desconhecimento em Ética.”

Já José Carlos Abellán, professor da Universidade Rei Juan Carlos de Madrid, Espanha, traçou um panorama da Bioética Clínica e, em especial, dos chamados Comitês de Ética Assistencial, em seu país. Ele admite, por exemplo, a existência de dificuldades para a promoção de debates bioéticos, por conta da formação deficiente em ética e em deontologia nas universidades, e da influência do pensamento bioético norte-americano do principialismo, em descompasso com a realidade espanhola.

Diferentemente dos comitês de Ética em Investigação Clínica – obrigatórios nos hospitais e que têm funções de aconselhar, protocolizar e de ensino –, os Comitês de Ética Assistencial espanhóis correspondem a um grupo multidisciplinar com funções de assessoramento em vários tipos de assistência, inclusive, na primária.

Autonomia, confidencialidade e diversidade
Outro destaque do evento foi a mesa redonda Aspectos conceituais sobre autonomia, confidencialidade e diversidade cultural,  presidida pelo coordenador do Centro de Bioética, Gabriel Oselka e por Henrique Batista e Silva, da Universidade Federal de Sergipe. 

Os participantes José Eduardo de Siqueira, da Universidade Estadual de Londrina;  Walquiria Quida Salles Pereira Primo, do Hospital de Base do Distrito Federal; e Reinaldo Ayer de Oliveira, coordenador da Câmara Técnica Interdisciplinar de Bioética do Cremesp, expuseram casos clínicos complexos e reais. Cada qual foi discutido em sala separada e, ao final dos debates, seus participantes voltaram ao salão principal do congresso, com uma espécie de consenso.

Siqueira falou sobre a situação de recusa de procedimento cirúrgico de paciente cardíaco que queria resolver questões relacionadas ao seu passado. A decisão foi respeitada, à revelia de dois de seus filhos, médicos. Walquíria abordou caso de paciente HIV positivo, que pediu ao seu médico para “não revelar” sua sorologia à esposa, no que foi respeitado. A mulher acabou se infectando, em nome da manutenção da relação médico-paciente.

Reinaldo Ayer falou sobre a situação de médico que vivia um conflito: contar ou não a paciente índia grávida que iria dar à luz gêmeos, mesmo sabendo que sua cultura impõe o infanticídio de um dos bebês.

Os trabalhos do dia foram encerrados pela conferência Bioética e Direito, proferida pelo ministro Carlos Ayres Brito, do Supremo Tribunal Federal /STF. O discurso do ministro – “iniciado” no universo bioético, por ter sido relator de processo defendendo o uso de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa, e voto vencido na questão que impossibilitou abortamento de fetos anencefálicos – teve tom de evidente defesa dos direitos da mulher, consideradas por ele como “a obras-primas da criação”.

Algumas frases do Congresso de Bioética Clínica
- A relação clínica deve ser baseada em confiança. O paciente deve saber que colocaremos os seus interesses acima dos nossos próprios – Roberto D’Ávila, presidente do I Congresso de Bioética Clínica

- Temos que repensar responsabilidades. Tanto dos profissionais, quanto das entidades que os representam, para que ninguém se esqueça de que nosso foco precisa ser evitar o sofrimento humano – Suzana Vidal, RedBioética UNESCO

- Um dos grandes desafios para o ensino da Bioética Clínica é motivar o docente. Os alunos não deveriam presenciar pessoas que os ensinam atuarem de maneira diferente daquela que classificariam como ética – Gabriel Oselka, coordenador do Centro de Bioética

- A sensibilidade dos alunos muda, quando começam a se envolver com pesquisa ética – Elcio Bonamigo, Universidade do Oeste de Santa Catarina

- A Bioética se tornou um campo de encontro para numerosas disciplinas, discursos e organizações envolvidas, Bruna Pasqualini, Hospital de Clínicas de Porto Alegre

- Entregamos tantos direitos aos pacientes, que deixamos de lado os interesses dos profissionais – José Carlos Abellán, Universidade Rei Juan Carlos de Madrid, Espanha

- Não há contradição inconciliável entre ciência e humanismo – Carlos Ayres Britto, ministro do Supremo Tribunal Federal/STF

- As decisões do Supremo passam necessariamente pelo humanismo – Carlos Ayres Britto, ministro do Supremo Tribunal Federal/STF

- O aborto é crime, já que interrompe uma vida viável. Porém, no caso de anencefalia, por duro que seja, existe um natimorto cerebral, que jamais será alguém – Carlos Ayres Britto, ministro do Supremo Tribunal Federal/STF.


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