01-10-2012

Polêmica ex-editora do NEJM denuncia quebra da ética em pesquisas nos países subdesenvolvidos

Professora da Harvard enfrentou com coragem (e sozinha) grandes laboratórios farmacêuticos


Marcia Angell, professora do Departamento de Medicina Social da Harvard University, dos EUA, é, sem dúvida, uma mulher corajosa e importante. 

Corajosa, por enfrentar grandes laboratórios farmacêuticos, apontando, em livro publicado em 2004, condutas antiéticas envolvendo conflitos de interesses, manipulação de resultados em ensaios científicos e “maquiagem” de medicamentos conhecidos, oferecidos ao público como novidades, entre outras facetas. 

Anos antes, em 1997, Angell já havia provocado surpresa ao assinar editorial no New England Journal of Medicine sobre estudo antiético patrocinado pelo poderoso National Institutes of Health (NIH, que agrega 27 centros de pesquisa norte-americanos), apoiado pelo Food and Drugs Administration (FDA), que colocava fetos de gestantes soropositivas africanas em risco de contrair o HIV.

Importante, por ser a única representante do sexo feminino a assumir o cargo de editor-chefe do New England desde a sua fundação, em 1812. Para dar uma ideia do respeito que goza nos EUA, a professora Angell integrou a lista das “25 personalidades mais influentes” daquele país, elaborada pela revista Time.

Na atual fase, seu espírito combativo se direciona ao abuso de prescrições de drogas antipsicóticas a crianças, e às chamadas medicinas alternativas. “Sou crítica a toda prática em Medicina que não se baseie em boa pesquisa ou, pelo menos, em forte plausibilidade biológica”, explicou, em entrevista exclusiva concedida ao Centro de Bioética do Cremesp, em 2012

Centro de Bioética – A senhora mostrou extrema bravura ao divulgar, em editorial no New England, denúncias relativas a estudo antiético com grávidas soropositivas africanas e tailandesas. Qual foi sua maior motivação, ao enfrentar forças tão poderosas, como o FDA, NIH, e a indústria farmacêutica?

Marcia Angell –
Foi ajudar a trazer a público o fato de que placebo estava sendo usado em grávidas com HIV, o que resultaria em muitos casos preveníveis de AIDS entre os bebês dessas voluntárias, pois já se sabia que o AZT conseguiria evitar a transmissão vertical. Estudos como esse jamais seriam permitidos nos EUA. Então, é claramente antiético conduzi-los na África, ou em qualquer outro lugar.

Cbio – Em um cenário repleto de infrações éticas, qual é a mais grave: exposição de vulneráveis a uma doença potencialmente fatal ou o empenho das agências financiadoras e de médicos-pesquisadores em tentar justificar tal tipo de pesquisa?

Angell –
Ambas são graves, mas suponho que o pior é permitir intencionalmente que bebês nasçam com uma infecção letal. Por outro lado, sim, as desculpas para justificar tais desmandos foram absurdas.

Por exemplo, os defensores desses estudos alegavam que “eram necessários, a fim de ajudar as mulheres em países pobres”. Como assim? Não havia nenhuma base para tal afirmação, muito menos para a outra que argumentava: “de qualquer forma, as mulheres do Terceiro Mundo não receberiam antirretrovirais. O que os pesquisadores estavam fazendo, portanto, era simplesmente observar o que aconteceria, caso o estudo não existisse”.

Cbio – Já naquela época a senhora garantiu que a “sua” revista “não publicaria artigos baseados em estudos antiéticos, ainda que motivados por méritos científicos”. Os pesquisadores, pelo menos, tentaram se adaptar a tal regra? 

Angell – Os pesquisadores demonstram-se bastante influenciados pelos costumes da respectiva comunidade e pela ambição de avançar academicamente. Com isso, frequentemente parecem desinformados quando cruzam as barreiras éticas, simplesmente não reparam nisso. 

É bem mais provável que os patrocinadores da pesquisa atravessem esse terreno pantanoso com consciência do fato, objetivando fazer com que suas drogas e equipamentos pareçam melhores do que realmente são. Para isso, lançam mão de artifícios, como influenciar no planejamento dos estudos, o que não é ético.

Cbio – Quase duas décadas depois do seu editorial histórico, os excessos continuam? Sujeitos de pesquisa permanecem em risco?

Angell
– Logo em seguida à controvérsia em torno do editorial e do artigo-denúncia de Peter Lurie e Sidney Wolfe (médicos e pesquisadores norte-americanos), na mesma edição do New England, estudos controlados com placebo foram suspensos. 

Mas então os EUA começaram a pressionar a Associação Médica Mundial (sigla em inglês, WMA), querendo mudar a Declaração de Helsinque, de forma a possibilitar que estudos que não seriam permitidos em países ricos fossem levados à frente em nações pobres. 

Após certa resistência, a Declaração tenta agradar a ambos lados, sendo, portanto, bem difícil de ser interpretada e empregada. Respondendo à sua questão: depois disso tudo, infelizmente, ainda realizamos pesquisas demais nos países subdesenvolvidos, onde são mais baratas e de fácil realização, permitindo que financiadores e pesquisadores ultrapassem as barreiras éticas com maior facilidade.

Cbio – Seu livro “A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: Como somos enganados e o que podemos fazer a respeito” lança severas críticas à indústria, afirmando que seus estudos não são tão inovadores como divulgam, nem tão caros, a ponto de justificar o alto preço dos medicamentos. Pode explicar?

Angell
– As grandes companhias farmacêuticas investem cerca de duas vezes mais em marketing do que em pesquisa. Seus lucros são tão vultosos quanto seus orçamentos em pesquisa.  

De forma consistente, os lucros dos laboratórios figuram entre os maiores de todos os setores. Portanto, é errado dizer que é necessário cobrar preços elevados em remédios para cobrir os custos em pesquisa. 

A verdade é que as companhias cobram preços altos para arcar com seus gastos com marketing e obter lucros obscenos. Quanto às “novas” drogas lançadas, aquelas submetidas à aprovação, são analisadas pelo FDA e classificadas de acordo com a possibilidade de serem melhores do que as já existentes ao tratamento de determinada doença. Levantamento que realizei no site do FDA mostrou que 80% de todos os medicamentos recém-aprovados, entre os anos de 2000 e 2008, foram considerados pelo órgão como “pouco prováveis de proporcionar vantagens”, em relação aos disponíveis.

Isso significa que, em vez de serem a inovação anunciada, a maioria é simples variação do que já existia no mercado.

Cbio – O conflito de interesses na relação instituições/pesquisadores/indústria pode ser superado? De que forma? Os médicos têm força suficiente para não sucumbir ao assédio dos laboratórios? Um dos argumentos usados para justificar eventual dependência é que “as companhias propiciam educação médica continuada”. 

Angell
– Laboratórios farmacêuticos não deveriam participar da “educação” de médicos, pois não se espera que forneçam informações objetivas a respeito de produtos comercializados por eles próprios. Ou seja, cabe à profissão médica a responsabilidade pela sua própria educação. 

Para que as coisas caminhassem de maneira imparcial, penso que o patrocinador das pesquisas em universidades deveria ficar absolutamente fora dos estudos, o que significa não opinar nos desenhos, não tomar parte na análise dos dados ou na elaboração de artigos. Além disso, pesquisadores não poderiam ter outros vínculos financeiros, como aquele que os obriga a prestar consultorias patrocinadas pelos laboratórios financiadores de remédios. 

Finalmente, em suas práticas, os médicos não deveriam aceitar brindes da indústria farmacêutica. Nem mesmo os considerados insignificantes, pois a literatura mostra que, mesmo pequenos presentes, especialmente aqueles dados aos médicos em formação, criam o desejo de retribuir de alguma forma. 

Reconheço que essas sugestões parecem radicais hoje, porque médicos envolvidos nos âmbitos práticos e acadêmicos estão bem acostumados a receber grandes somas de dinheiro, jantares e presentes da indústria. Incidentalmente, isso provém do orçamento de marketing das companhias, pois não há verbas para “educação”.

CBio – Atualmente, suas críticas em artigos e entrevistas direcionam-se aos tratamentos alternativos e ao uso de drogas psiquiátricas em crianças. Medicina alternativa é ruim? Há abusos na prescrição de antipsicóticos a crianças? 

Angell
– Discordo de toda a prática de medicina que não se baseie em boa pesquisa ou, pelo menos, em forte plausibilidade biológica. Por isso, tenho postura crítica em relação à medicina alternativa. Se tais práticas fossem testadas cientificamente, não seriam chamadas de alternativas. 

Quanto à segunda questão, drogas psiquiátricas certamente estão sendo prescritas de forma abusiva a crianças. Digo isso baseada em pronunciamentos de especialistas que, muitas vezes, contam com vínculos financeiros com laboratórios farmacêuticos, em vez de comprometimento com estudos científicos. 

Nos EUA, por exemplo, observa-se que problemas de comportamento motivados por fatores sociais, econômicos e familiares passaram a ser enquadrados na categoria “distúrbios psiquiátricos” porque os psiquiatras que definem essas doenças têm conflitos financeiros de interesse.

Cbio – Durante a sua sólida e respeitável carreira, a senhora provocou várias instituições e grupos poderosos. Sofreu ameaças ou retaliações por conta delas?

Angell
– Nunca fui intimidada, mas frequentemente minhas posições foram descaracterizadas. 

Por exemplo, quando questionei se havia evidências científicas suficientes de que implantes mamários de silicone eram perigosos, recebi acusações de estar sendo paga pelos fabricantes, o que certamente não é verdade.

Cbio – Por que a senhora foi considerada pela conceituada revista Time como “uma das pessoas mais influentes dos Estados Unidos”?

Angell
– O julgamento da Time baseou-se no trabalho mencionado acima, publicado no livro: Ciência em julgamento. O choque entre Evidência Científica e a Lei, no caso de implante de próteses mamárias. 

Lançado em 1996, a obra fez algumas recomendações à reforma do sistema legal dos EUA, no sentido de tornar as ações de responsabilidade dos produtos mais racionais, levando a melhores decisões. Algumas dessas recomendações foram adotadas pelo governo do país.

Cbio – Por que a senhora decidiu ser médica e como se tornou uma referência na área de ética em pesquisa, a ponto de ser a única mulher até hoje a ocupar o cargo de editora-chefe do New  England Journal of Medicine?

Angell –
Sempre me interessei por Filosofia e escrita, além da Medicina. Tais áreas contaram pontos positivos em minha trajetória no New England. 

Escolhi ser médica porque sempre achei uma coisa terrível ficar doente e gostaria, sinceramente, de fazer algo que pudesse ajudar pessoas nessas condições. Sei que pode parecer piegas e repetido, mas é a verdade...

Entrevista originalmente publicada na revista Ser Médico nº 61 

* Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)

 


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