01-01-2013

Excesso de internet pode criar jovens incapazes de pensar por si próprios

Baronesa e neurocientista de Oxford dedica-se ao estudo dos efeitos cerebrais das novas tecnologias


O cérebro humano pode se infantilizar em decorrência do excesso de tempo na internet, como ocorre com crianças pequenas atraídas por manifestações sonoras e luminosas. Pior ainda: pelo imediatismo dos flashes e imagens oferecidos pelo computador, jovens moldados pelas redes sociais e jogos online tendem a captar as informações de forma deficitária, devido à falta das estruturas conceituais que ligam um acontecimento ao outro.

Esse panorama assustador é traçado pela neurocientista Susan Greenfield, professora de farmacologia sináptica na Universidade de Oxford e de fisiologia, no Lincoln College que, além de dedicar-se a descobrir os efeitos cerebrais das novas tecnologias, há anos explora mecanismos característicos das regiões afetadas pelo Mal de Alzheimer e o de Parkinson.

Por outro lado, apesar de seu currículo impressionante – que inclui mais de 30 títulos de doutorado honoris causa e o fato de haver sido a primeira mulher a dirigir a Royal Institution, tradicional organização britânica para a ciência – esta baronesa de 62 anos é conhecida em seu país por popularizar temas científicos no rádio e na televisão. Aliás, papel crucial para levá-la à Câmara dos Lordes, do parlamento britânico.

Simpática, simples e polêmica, a nobre inglesa falou com exclusividade ao Cremesp.

Na ocasião, entre outros pontos, defendeu que a experiência dos médicos, a partir de sua convivência com pacientes, deveria ser considerada como “evidência científica”. Confira a íntegra.

Concília Ortona**

Centro de Bioética – A senhora é bastante crítica a respeito da influência da internet, suas redes sociais e jogos online, no funcionamento cerebral. O estímulo do computador não consegue ser benéfico, por exemplo, a pacientes com os primeiros sinais de Alzheimer?

Greenfield – O uso da internet como meio de treinar o cérebro pode até beneficiar essas pessoas, da mesma forma que outras atividades, como a leitura. Chega a ser brilhante como exercício, pois encoraja a neurogênese cerebral.

Nesse sentido, porém, há medidas bem mais importantes, como propiciar mudanças positivas no estilo de vida dos pacientes, além de pesquisar o porquê de as células neuronais morrerem, visto que conhecemos só os mecanismos básicos de seu funcionamento.

Quanto a eu ser “crítica” da internet, vamos esclarecer: nunca censurei as tecnologias em si. Seria estranho e maluco dizer que carros são ruins, considerando sua utilidade à maioria.

Porém, se tornariam péssimos, se quem estivesse ao volante fosse uma criança de quatro anos. Ou seja, o emprego de novas ferramentas depende do contexto, do tempo e da forma de utilização. Por exemplo, adoro ver minha mãe, viúva, de 89 anos, encontrando amigos de longa data pelo Facebook. É ótimo, se isso puder estimular seu cérebro! Mas não acredito no mesmo em relação a crianças pequenas e adolescentes que, pelo imediatismo das imagens na internet, perdem-se entre as etapas que levam aos acontecimentos, nas estruturas conceituais que ligam um fato ao outro.

É o oposto das histórias contadas pelos pais, que oferecem início, meio e fim, lógica que estimula o cérebro a pensar em sequência, associar a causa, o efeito e o significado.

Cbio – Os defensores da internet e de jogos de computador argumentam que as novas tecnologias tornam as crianças mais inteligentes e com raciocínio mais rápido. É errado?

Greenfield– Não se trata de ficar mais esperto ou inteligente. É um fenômeno bem mais complexo. É preciso distinguir a “inteligência fluida”, relacionada à resolução de problemas novos, que não necessitam de instruções aprendidas pela experiência e por fatores sócio-culturais; da “inteligência cristalizada”, vinculada ao conhecimento adquirido no decorrer da vida.

As cenas rápidas e as luzes proporcionadas pela internet parecem referir-se ao primeiro tipo. Quando eu tinha 16 anos, adorava Shakespeare e fazia meu irmãozinho de três decorar falas de Macbeth. Ele aprendia rapidamente, entretanto não era capaz de entender. Não estava ficando mais inteligente, apenas, demonstrando sua capacidade de traçar um desenho mental nada cristalizado.

Meu irmãozinho sabia de cor uma cena de Macbeth, na qual a finitude da vida era simbolizada pela luz de uma vela. Se alguém perguntasse o significado, diria: “isso é uma vela. Ela apaga. É o meu aniversário?”.

Isto é, informação não é conhecimento, que demanda introjetar e contextualizar um fato. A partir de estudos, temo que permanecer na internet exageradamente infantilize o cérebro, justamente pela exposição repetida a flashes e imagens luminosas, sem conteúdo nem estrutura. O risco é moldarmos uma geração de jovens incapazes de pensar por si próprios e ou apáticos com os demais.

Cbio – Mas essas crianças não vivenciam apenas um contexto, em frente ao computador. Participam de outros, como a escola, a família, a casa dos seus amigos...

Greenfield – Um garoto que fica algum tempo no computador, mas cumpre as outras etapas, como escalar árvores, correr pela praia, abraçar os outros, fazer amigos reais, é diferente do colega que se mantém 10, 11, obsessivas horas frente a uma máquina, eleita sua prioridade absoluta. Não me parece saudável um adolescente com várias oportunidades de lazer sentir-se “sozinho, se não estiver na internet”.

Parece que perder dias nas redes sociais é menos estressante do que conversar ao vivo. Não precisam enfrentar entonações de voz, cheiros, contato físico, olhos nos olhos, se expor a brigas etc., e, como conseqüência, não se arriscam. Ao fugirem de situações corriqueiras que exigem iniciativa e coragem, tendem a se desenvolver de maneira indevida sem se dar conta, pois o cérebro humano é bom em camuflar certas coisas.

Se o ambiente for limitado a duas dimensões, visão e audição, por um período de dez horas diárias ou mais, o cérebro terá seu funcionamento modificado. O que pode acontecer no futuro? Conexões podem ser perdidas e, com elas, a oportunidade de tornar-se uma pessoa normal.

Cbio – Vemos várias situações nos EUA, por exemplo, de crianças e adolescentes entrarem armados na escola e atirarem contra os colegas. Os jogos de internet conseguem dar uma impressão de “normalidade” a tais condutas?

Greenfield – É um assunto complexo, o qual não se deve simplificar. No entanto, uma das razões pode ser atribuída à violência gratuita presente nos videogames. Por que jovens queimam lojas, quebram estruturas, sem ter a intenção de ao menos roubar coisas? Matam sem razão de matar, sem qualquer significado político, ideológico ou social?

Cbio – A senhora tem filhos? O que faria se ele ou ela insistisse em passar o dia no computador?

Greenfield – Sou divorciada, não tenho filhos, mas convivi por anos com uma enteada.

Sim, sempre me perguntam “quantas horas meu filho pode passar no computador?”. Digo que depende da idade, da cultura, do gênero, dos atrativos, mas é óbvio que precisamos criar na criança um senso de identidade interior, relativo ao que existe à sua volta.

Quando lemos um livro para ela e a levamos imaginar um mundo com flores coloridas, mares e navios, com montes de dinheiro para gastar, criaremos um cenário interessante, excitante, e capaz de preencher mais do que um jogo online.

Não basta aconselhar a parar ou a diminuir o vício, é preciso substituir o momento prazeroso por outro. Sei que a situação é complicada. Pesquisa realizada na Inglaterra, entre 1970 a 1990, apontou queda drástica no espaço disponível para as crianças brincarem sem supervisão, seja num jardim, praça ou playground. Na falta de tempo dos pais e de oportunidades de lazer, o computador funciona como apoio e, como conseqüência, aparecem aquelas boas desculpas de que os equipamentos tornam as crianças e adolescentes “mais espertos”.

Cbio – Quando a televisão surgiu, muitos acharam que iria resultar em crianças solitárias dentro de casa, mas isso não correspondeu totalmente à verdade...

Greenfield – Há muitas diferenças. A mais importante: estudos que comparam a televisão com a internet apontam que a segunda contém entre seus princípios a interatividade, que compele as pessoas ao abuso.

Quando a televisão foi lançada, a família sentava-se à noite em volta do único aparelho da casa, trocava ideias, interagia, conversava sobre o que assistia. Era um pouco como no século XIX com as apresentações de piano vitoriano, que propiciavam atividade conjunta. Não é igual a estar solitário dentro do quarto, eleito pelos adolescentes como o cômodo mais interessante da casa.

No meu tempo, ficar dentro do quarto era punição. Hoje é mais interessante do que passear e viver novas experiências.

Cbio – Quais seriam os efeitos no longo prazo, caso as crianças e adolescentes fossem primariamente “moldados” pelas luzes e sons do computador?

Greenfield – Os estudos estão chegando, mas precisamos de vários outros, pois é um campo obscuro. Não funciona como um teste de gravidez, positivo ou negativo.

Porém, costumo citar dois estudos voltados ao cérebro e às novas tecnologias: o coordenado pelo cientista FuchunLin, da Academia Chinesa de Ciências, publicado em 2012 na revista PLOS One, conclui que jovens que navegam demais nas redes apresentam mudanças cerebrais semelhantes àquelas verificadas em compulsivos por jogos de azar. O outro, de autoria da cientista cognitiva Daphne Bavalier, da Universidade de Rochester (EUA), publicado em 2010 pela revista Neuron, mostra a grande correlação entre exagero no computador e anormalidades cerebrais.

Cbio – O que tem a dizer aos críticos de suas ideias, quando reclamam que há poucas evidências científicas sobre elas?

Greenfield – Argumento que essa não é a verdade: podem dizer que “não há evidências suficientes” ou “evidências definitivas”, mas elas existem.

Alguns poderiam dizer também: “não existem provas definitivas de que o computador seja inofensivo”.

Pelo menos, contamos com suficientes indicações de que deveríamos nos debruçar sobre o assunto! Antes de falar em evidências, o próximo passo seria olhar para essas indicações e levantar a epidemiologia.

No início dos anos 50, colegas sugeriram a relação entre cigarros e câncer, apesar de não conseguirem provar. Hoje, seria esquisito se alguém dissesse: “existe apenas correlação entre a doença e o cigarro, não provas”. Em minha palestra aqui em São Paulo, um médico da plateia opinou que as experiências dos especialistas deveriam ser consideradas, pois se baseiam no dia a dia de sua rotina. Quando observam pacientes precisando de alguém para mantê-los financeiramente, porque passam dias inteiros na internet, não vão pensar em vício? Um vício que chega a dimensões inesperadas, ligadas à perda de liberdade e do controle de si mesmo. Para mim, isso também funciona como evidência. Dizer o contrário seria o mesmo que afirmar que o céu é verde.

Cbio – Seu principal campo de pesquisa relaciona-se à psicologia do cérebro com ênfase ao estudo das causas do Mal de Parkinson e do Alzheimer, mas tornou-se conhecida no Reino Unido por popularizar a ciência. Como surgiu seu interesse por tais assuntos?

Greenfield – Não pensava em virar neurocientista. Entrei em Oxford com a intenção de cursar Filosofia, mas acabei me interessando pela Psicologia e, depois, pela Fisiologia. Apesar de não fazer ciência no início de minha formação, sou grata por frequentar um ambiente filosófico que me proporcionou perspectivas diferentes e me permitiu unir vários elementos.

Fui treinada nos clássicos, em questões como “o que faz as pessoas pensarem sobre o que elas são?”. Encurtando uma longa história, não acordei certo dia pensando em buscar a forma com que ocorre o Mal de Parkinson ou o de Alzheimer. Enquanto preparava aula no laboratório para meus alunos de medicina, em um sábado chuvoso, me dei conta de que o mecanismo químico referente à perda do substrato cerebral parece ocorrer na mesma área em ambas as doenças.

Tal achado foi excitante, pois abre portas a estratégias para interromper o processo de morte neuronal nesses distúrbios.

Cbio – Seu trabalho como cientista influencia seu desempenho como baronesa, na Câmara dos Lordes?

Greenfield – Muito. É justamente o que justifica minha presença por lá, representando os pacientes demenciados. Apenas 10% das pessoas daquela Casa trabalham com ciência, mas provocam debates bem importantes. Orgulho-me de fazer parte desse rol e tentar traduzir tópicos científicos aos lordes.

* Entrevista originalmente publicada na revista Ser Médico nº 62

** Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)


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