29-01-2016

Educação em ética e o drama dos refugiados sírios

Professora turca também fala sobre diferenças nos níveis de mortalidade materna entre nações ricas e pobres


Como o berço da bioética é anglo-saxão é, no mínimo, curioso, conhecer opiniões de especialistas vindos de realidades diversas, como, por exemplo, da Turquia – cuja população é majoritariamente muçulmana. Mais interessante ainda é conhecer as ideias de médica turca que traz no –extenso– currículo o fato de haver participado de instâncias como do Conselho Superior de Saúde do Ministério da Saúde e da Comissão de Ética do Conselho Superior das Universidades de seu país, além da fundação da Associação Internacional de Educação em Ética (sigla em inglês, IAEE), da qual foi presidente.

Gentil, a professora Berna Arda, da Faculdade de Medicina da Universidade de Ankara, Turquia, concedeu entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp, no intervalo de suas participações no XI Congresso Brasileiro de Bioética (setembro, em Curitiba, Paraná), que versaram, respectivamente, sobreBioética e Mortalidade Materno-Infantile O Ensino da Ética em Tempos de Desigualdades na área da Saúde.

Veja, a seguir, a íntegra da conversa.

Por Concília Ortona

Centro de Bioética – Sob os pontos de vista ético e biético, quais são as diferenças mais marcantes em relação à mortalidade materno-infantil entre as várias nações e culturas?

Berna Arda – Em geral, são aceitos alguns marcadores que demonstram a situação do desenvolvimento da saúde em cada país. Um deles é a mortalidade materno-infantil, além do número de nascimento fora de instalações médicas; divulgação, distribuição e uso de métodos pré-natais; frequência de gestações e abortos de repetição; ocorrências de doenças infantis evitáveis; taxas de imunização e nutrição; etc.

Então, existem questões básicas às quais os governos deveriam responder com sinceridade, como: a situação em saúde local acompanha os níveis socioeconômicos? Quais são os principais problemas relacionados à saúde materna? O que eleva os níveis da mortalidade e morbidade do recém-nascido?De que forma são difundidos os métodos contraceptivos? O aborto é acessível, mediante gravidez indesejada? Como é a legislação de saúde sobre tais temas?

Além de buscar refletir sobre tais perguntasé obvia a necessidade de apoio e proteção especial a mulheres e crianças imigrantes sem cidadania ouasilo político, na qual são confrontadas com assédio sexual, estupro, tráfico de seres humanos, violência e doenças infecciosas fatais, entre outras desgraças.

Aspectos concernentes ao acesso à educação também fazem parte do bojo de discussão envolvendo a mortalidade materno-infantil, considerando-se que os índices de fertilidade são maiores entre as mulheres de baixa escolaridade. A alocação de recursos também faz parte da agenda de discussão bioética dentro deste assunto, pois, discute-se ou hoje, quem deveria ter prioridade nos orçamentos de saúde – a mulher ou a criança?

O certo é que temos ainda um longo caminho a andar em termos de desigualdades que levam ao aumento da mortalidade materno-infantil, apesar dos esforços e gastos. Muitas vezes, ser um acadêmico dedicado à Ética e à Bioética significa sentir-se“remandocontra a maré”, mas é preciso superar, e não perder a esperança.

Já é um bom começo ter claro que as coisas que não acontecem do dia para a noite.

Cbio – Crianças e as mulheres são sempre vulneráveis? Por quê?

Arda –Do ponto de vista bioético, pensar em mulheres e crianças como grupo úniconos fornece parâmetros quantoacessibilidade, segurança e efetividade dos serviços básicos. Observa-se que, em boa parte das diferentes regiões do mundo, as barreiras sãosemelhantes: existem demandas econômicas, sistêmicas, informativas, culturais e linguísticas,para conseguir-se apoio e serviços.

A partir desta análise é possível concluir que sim, são vulneráveis na maior parte do tempo.

Cbio – No Brasil, a Bioética corresponde a uma pequena parte da grade de educação médica, na graduação e pós-graduação. O mesmo ocorre na Turquia?

Arda – Em primeiro lugar, vale deixar claro que existem diferenças entre os nossos países.

Aulas de ética e deontologia durante a graduação em Medicina são quesitos obrigatórios, e isso parece ser uma vantagem muito importante da Turquia em relação ao Brasil.

Existem aproximadamente 90 escolas de medicina na Turquia, todas com forte formação em ética médica e deontologia. Assim você pode ver “ética e deontologia médica” no currículo de todos os médicos. Isso não significa que contamos com colegas extremamente bem formados nisso, porque falta um longo caminho para normatização adequada e efetiva.

Mudanças em relação à valorização da Bioética entre médicos tomaram vulto em meu país na década de 1990, tornando-se ainda mais fortes em 2002, com o estabelecimento de um currículo único, definido com a colaboração e o entendimento de nossas escolas médicas. Assim, nossos futuros médicos são estimulados a não apenas dedicar-se a um conjunto de sintomas e doenças.

Ou seja, para determinar conhecimentos básicos dos estudantes de medicina são avaliados seus conhecimentos em clínica e ciência, mas também suas atitudes éticas em relação à profissão e aos pacientes.

Cbio – A senhora é ativista de uma nova entidade dedicada ao ensino da Ética (IAEE). Poderia falar um pouco disso?

Arda – Associação Internacional para a Educação em Ética (IAEE, site encontrado em https://www.ethicsassociation.org/) é um novo board  voltado ao tema, fundado em 2011. Sua conferência inaugural ocorreu em 2012, em Pittsburgh, EUA; a 2ª,em 2014, em Ankara, capital da Turquia, e a 3ª, em 2015, em Curitiba, Brasil.

Entre os objetivos da IAEE figuram promover o desenvolvimento de conhecimentos e métodos de educação ética; funcionar como centro global de contato entre especialistas;e aproximar outros interessados em Ética e Bioética ao redor do mundo.

Além dessas metas, pretende organizar conferências internacionais e outras reuniões acadêmicas com um intervalo máximo de dois anos; publicar relatórios e matérias obtidos de seus encontros acadêmicos e manter contatos com outras organizações.

Cbio – Qual é a importância da educação formal no ensino da Ética e Bioética aos profissionais de Saúde?

Arda –Aeducação bioética fundamenta-se na abordagem humanista e, por isso, temos que refletir sobre a necessidade de seu uso em tempos de iniquidade.

É amplamente aceito o fato de os componentes éticos estarem presentes na atitude humana – e a educação é uma forma de chegar-se a tal perspectiva: nas universidades médicas, por exemplo, os educadores em Bioética dedicam-se a encorajar e inserir atitudes críticas e questionadoras à identidade do futuro profissional. No final das contas, a oferecer um programa biomedicina baseada no valor.

Na verdade componentes éticos são cruciais para a prática médica do século XXI, cujas metas podem ser resumidas na necessidade de desenvolver, ao mesmo tempo, atitudes profissionais e humanas, bem como, proteger as características humanísticas da medicina em si. De que forma estamos adentrando em nossa “atmosfera moral”? É uma bela pergunta, que demanda respostas da nossa parte.

Um método eficaz de “transmissão de boas atitudes” no decorrer do ensino médico corresponde à priorização da interatividade. Isso inclui discussão de casos, coisa que a própria literatura demonstra que os alunos adoram; simulações de situações clínicas e debates estruturados, utilizando filmes e histórias da vida real.

Curiosamente, ao contrário do que acontece no Brasil e em outras culturas, casos sobre transfusão de sangue a Testemunhas de Jeová não são bonsexemplosde discussão na Turquia, já que não contam com as devidas “conexões” com as práticas da vida real da nossa população: sob o ponto de vista dos alunos, corresponde a algo difícil de entender e fantástico demais.

N. da R. A Turquia não reconhece formalmente o uso do recurso de “objeção de consciência” para doar ou receber sangue.

De qualquer maneira, no processo de ensino da Ética e Bioética é preciso estar conscientede certas limitações, entre as quais, o pouco tempo alocado para discussão ética pelos professores e pouco espaço na grade dos currículos; literatura escassa e alunos muito numerosos em sala de aula. Há também certo ceticismo, por parte de educadores e cientistas, a tal ensino.

Para obterem-se resultados melhores, penso que três quesitos não podem ser deixados de fora: a busca por educação qualificada e padronizada em Bioética, em todas as escolas médicas; pelo apoio administrativo às instituições e educadores na área; além de conscientização e sensibilização do público-alvo – estudantes e médicos – em relação a direitos e responsabilidades.

Além disso, sistemas de saúde são complicados, confusos, burocráticos e orientados para o lucro. Funcionam como um negócio, a exemplo de montadoras de automóveis ou fábricas de camisas, transformando-os em ambiente em que difícil para difundir características humanísticas.

Cbio – Como é a Bioética na Turquia? Baseia-se primordialmente no Principialismo, como nos EUA?

Arda– Ao longo da história, a discussão e a resolução de conflitos morais têm variado em função do tempo, lugar, fé e tradição cultural da sociedade. OPrincipialismo, contudo, é tão comum na Turquia como em outros países, concordando com a reivindicação de Beauchamp e Childress de que os princípios são aplicáveis a qualquer cultura e sociedade, oferecendo uma estrada muito prática e fácil de ser seguida, além de que, testada em pesquisas em todo o mundo.

Sendo assim, na prática acadêmica, a maioria prefere usar tal abordagem: existe um monte de artigos usando os Princípios, publicado por estudiosos turcos. Há, porém, quem dirija sua atenção aos escritos sobre Ética de Rumi.

N. da R. MawlanaJalāl-ad-DīnRumi(1207–1273 ) foi um poeta  jurista e teólogo persa, cujo nome significa literalmente Majestade da Religião.

Cbio– Não se pode falar com uma especialista em Bioética turca sem mencionar o drama vivido em um país vizinho, a Síria. Como a senhora vê os conflitos éticos relacionados à acolhida aos refugiados?
N. da R. – A entrevista aconteceu em setembro, portanto, cerca de dois meses antes dos atentados terroristas à Paris pelo grupo Estado Islâmico.

Arda– A imigração síria é uma questão atual e triste, totalmente dependente do panorama político. Quando falo nesse assunto, procuro focar na identificação de problemas relativos à acessibilidade aos serviços de saúde e na analise da situação sob a perspectiva da ética e dos direitos humanos.  As iniciativas éticas, porém, conseguem apenas mostrar a direção certa: a solução definitiva baseia-se em estabilidade política, fincada no respeito às pessoas e na democracia.

Na prática, desde o início da turbulência na Síria, em março de 2011, o número de refugiados em busca de asilo na República da Turquia aumentou que, como país vizinho, tem seguido a política de abertura de fronteira e concessão aos refugiados de “estatuto de proteção temporária”que inclui estadia ilimitada,salvaguarda contra a repatriação forçada e acesso às necessidades imediatas.

Serviços de saúde contínuos são fornecidos em 25 campos de refugiados, localizados em dez províncias turcas – os que vivem fora dos campos têm acesso restrito aos serviços de saúde.

Mas é preciso reconhecer que, desde 2012 tal situação leva a sérios problemas, especialmente nas regiões fronteiriças, por conta do aumento do custo de vida, alocação injusta de recursos em saúde, e, mesmo, pela tensão com a população local – é necessário encontrar maneiras de integrar adequadamente essas pessoas, porque não há pátria para onde elas podem voltar. 


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