01-09-2014

“Não nos livraremos da última célula infectada”

Um dos pais do HIV considera que a AIDS vai se tornar uma doença crônica


O trabalho do cientista ítalo-americano Robert Gallo, sem dúvidas, foi destaque no século passado: sua atuação no campo da AIDS – doença que, desde o início da década de 1980, já matou mais de 36 milhões de pessoas no mundo – foi tão essencial, que tornou seu nome o mais citado literatura científica, do início de 1980 até os anos 90. 

Tal trajetória de sucesso engloba os fatos de haver sido a sua equipe, no Institute of Human Virology em Maryland, EUA, a identificar os primeiros retrovírus humanos (vírus com RNA como material genético), o HTLV1 e o HTLV2, e, depois, a desenvolver o teste de HIV no sangue, acelerando o diagnóstico de uma epidemia sem precedentes. 
Engana-se, no entanto, quem relaciona décadas de pesquisa em laboratório a uma personalidade reflexiva e calada: conhecido por seu carisma e por dizer o que pensa, Gallo mantém essa postura em entrevista exclusiva ao Centro de Bioética, originalmente publicada em Ser Médico, que incluiu questões formuladas pelo infectologista Caio Rosenthal, conselheiro do Cremesp e referência no tratamento da AIDS no Brasil. 

Gallo respondeu tudo sem censura, até perguntas delicadas. Nisso é inigualável: quando perguntado, por exemplo, sobre eventual mágoa por não ser laureado com o Nobel de Medicina e Fisiologia como identificador do HIV, ao lado dos virologistas franceses Luc Montagnier e Françoise Barré-Sinoussi, disparou: “Claro! Desapontado e surpreso!”. Por outro lado, sua versão busca minimizar as rixas históricas com o virologista do Instituto Pasteur, classificando Montagnier como personagem “quixotesco” como ele, em uma época sem a tecnologia de ponta de hoje. 

À época da entrevista, aos 77 anos, (em 2014) e sem planos de aposentadoria, o pesquisador conserva o entusiasmo e a ambição científica de outrora, apostando na cura funcional da AIDS em curto prazo (capaz de diminuir a quantidade de vírus no organismo a níveis tão baixos, que dispensará tratamento e não será transmissível); e na vacina desenvolvida por seu grupo, “candidata efetiva na prevenção do HIV". 
Confira, a seguir, isso e muito mais na conversa com Gallo. 

Por Concília Ortona* 

Cbio – Do início da década de 1980 até os anos 1990, o senhor foi o cientista mais citado em todo o mundo. Tal destaque trazia orgulho – ou era um peso sobre os ombros?

Gallo – Estamos nos referindo ao fato de haver sido mencionado com mais frequência por meus pares em literatura científica, não pela mídia, mas ambas as afirmações são verdadeiras: foi motivo de orgulho e um peso. 

Por um lado, tal reconhecimento traz bons sentimentos, como satisfação, sensação de dever cumprido e de realização profissional. Ao mesmo tempo, ficar tanto em destaque significa uma visibilidade maior do que seria considerado útil. 

Cbio – Antes da pesquisa do vírus HIV, o senhor trabalhou por décadas na pesquisa do câncer (Gallo decidiu estudar células tumorais ainda na adolescência, quando a irmã de 13 anos morreu de leucemia). Por que a mudança de planos? É mais difícil – e frustrante – dedicar-se à cura da AIDS ou do câncer?

Gallo – É quase a mesma coisa. Só que, com o câncer, o desafio é um pouco mais complicado, porque corresponde a muitas doenças diferentes. 

Com a AIDS é possível dedicar-se e a uma causa única, individual e uniforme: o HIV. Então há realmente alguma chance de fazer-se algo completo.

Já com o câncer é preciso tratar cada tipo de tumor como uma doença singular: um dos desafios é procurar pontos em comum, em meio a um monte de coisas que estamos começando a aprender. 

Um parêntese: ainda trabalho com câncer. Minha equipe tem grande interesse em tumores cuja incidência é maior em infectados pelo HIV.

Cbio – Ao recordar da pandemia da AIDS nos anos 1980 e 1990, qual é o seu sentimento? Alguma vez sentiu-se desesperado ou desesperançado, como boa parte da humanidade?

Gallo – Certamente há, pelo menos, alguns momentos de minha carreira em que me senti assim. 

Com o HIV a frustração veio do período de 1982 ao início de 1983, quando tentávamos estabelecer se o tal retrovírus, agora conhecido como HIV, era o causador da AIDS. Desde 1982 tínhamos tal suspeita, mas não conseguíamos, de jeito nenhum, chegar à ligação entre este agente em particular e a causa da AIDS, o que demandou tempo e avanços tecnológicos do nosso laboratório.  

Sabíamos que facilitaria encontrar tal vínculo o fato de desenvolvermos um exame de sangue capaz de detectar o vírus, porque era o tipo de técnica facilmente reproduzida em todo o mundo, resultando na acumulação gradual de dados. Isso, porém, não aconteceu do dia para a noite, e sim, em cerca de um ano e meio. 

Sim, tínhamos informações suficientes, mas convencer o mundo não foi nada fácil: a ciência não se move sem a verificação, ou seja, a confirmação dos achados por outros laboratórios. 

Mas o estresse começou antes mesmo da AIDS, quando tentávamos provar que humanos poderiam ser infectados por retrovírus existentes anteriormente à descoberta do HTLV-1 e HTLV -2. Foi um processo longo, difícil e frustrante.

Cbio – Lembra-se do momento em que pensou “talvez possa vencer esse ‘jogo’” contra o HIV? 

Gallo – Sem dúvida, houve um momento-chave em nosso trabalho. Estávamos no outono de 1983, quando aprendemos a produzir, de forma contínua e permanente, cepas de HIV em um sistema de cultura de células. 

Imediatamente soubemos que, com essa façanha, teríamos condições de produzir a quantidade suficiente de vírus e de disponibilizar um exame de sangue a todo o mundo – o que logo ocorreu. 

Com esse montante, também poderíamos obter informações genéticas sobre o agente, entendendo seus diversos genes e proteínas.

Cbio – Poderia, por favor, dar a sua versão sobre eventuais desentendimentos científicos e/ou pessoais com Luc Montagnier (por anos, os cientistas e os governos de seus países disputaram a “paternidade” do HIV)? Ficou magoado quando o francês recebeu o Nobel de Medicina ou Fisiologia em 2008, em virtude da “descoberta do vírus da AIDS”?  

Gallo – O comitê do Nobel é composto por quatro ou cinco cavalheiros suecos e, tudo bem, esta é a decisão deles. Se eu fiquei desapontado? Sim, claro – e muito surpreso. 
Porém não reclamo: vários países do globo têm me honrado com muitos prêmios, ao lado, ou não, do Dr. Montagnier. 

Alguns desses prêmios correspondem à bem mais do que eu consideraria meu justo quinhão vida a fora, e incluem o Paul Ehrlich, o maior da Alemanha; o Dan David Prize, o maior de Israel; o Japão, o grande tributo científico e tecnológico daquele país; o Príncipe das Astúrias, Espanha; o Gairdner Award, Canadá, além de dois Albert Lasker de Pesquisa Médica Básica, nos EUA, pelo “entendimento, diagnóstico, prevenção, tratamento e cura de enfermidades”. 

Nosso grupo, em Maryland, abriu o campo da AIDS, ao identificar o primeiro e o segundo retrovírus do homem, HTLV- 1 e o HTLV -2, e ao estabelecer a ligação entre o HIV como agente causador da AIDS. 

O que o ficamos fazendo no início de 1984? Isolamos 48 vírus HIV em 48 pacientes diferentes, e fomos capazes de demonstrar que era a causa da AIDS. Além disso, desenvolvemos o exame de sangue que proporcionou uma grande quantidade de informações adicionais, mostrando que o HIV era a causa da doença. 

Mas, sim, o artigo de Montagnier e equipe, publicado na revista Science, foi certamente o primeiro a relatar um vírus diferente dos nossos HTLV’s. Isto é, precede o nosso na real primeira detecção daquele vírus que, mais tarde, se provaria ser o vírus da AIDS. 

Na verdade, eu e Luc Montagnier tivemos poucos desentendimentos, se houve algum. Já publicamos juntos em certas ocasiões, como na Nature; e no New England Journal of Medicine, falando sobre a descoberta do HIV como causador da AIDS. 

Cbio – O empenho de cientistas na cura de algumas doenças parece até romântico. Vislumbra algum colega capaz de sucedê-lo, ou a Luc Montagnier, na dedicação pessoal e científica contra a AIDS? David Ho (pioneiro no uso de proteases inibidoras – o “coquetel” antiaids) é bom candidato?

Gallo – A resposta à sua pergunta abre possibilidades demais, e mencionar algumas seria extrema especulação de minha parte. 

David Ho é um cientista clínico rápido e ativo, que faz o campo ir em frente. Deixou suas contribuições em termos de realização de ensaios clínicos com medicamentos disponibilizados pelos laboratórios. Só que o legado dele é de um tipo diferente do meu e de Montagnier: nossas pesquisas eram mais “quixotescas”, em busca por algo novo. 

Há alguns poucos grupos que fazem hoje estudos assim, contando com tecnologia extremamente superior a que tínhamos.  Não, atualmente não há ninguém muito mais jovem do que a gente que irá passar pelo que passamos. 

Contudo, nos EUA, há tremendos cientistas trabalhando na questão, como Bob Siliciano, na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, e Warner Greene, dos Institutos Gladstone, em São Francisco, Califórnia. 

Cbio – A comunidade científica tem afirmado que a cura para a AIDS vai acontecer por volta de 2020.  Em nível global, é viável? Por que o senhor crê em “cura funcional” da AIDS, mas não em “cura virológica”. Por que o HIV é tão difícil de ser eliminado? 

Gallo – Sim, é possível, falarmos em cura funcional da AIDS – que, na prática, significa que alguém infectado pelo HIV vai conseguir suprimir e manter a supressão do vírus, com a evidência de que não precisará tomar mais remédios. É razoável e provavelmente vai acontecer dentro dos próximos cinco a dez anos. 

Entretanto é uma visão fantasiosa falar em estratégias promissoras para a total cura virológica até 2020: se algum cientista defender isso, responderei que não sabe do que está falando. 

É difícil acabar com o HIV porque existem células infectadas de forma latente, de longa duração, impossíveis de ser encontradas, e que, periodicamente, parecem liberar vírus. A impressão é de que, não importa o quão a nossa dedicação seja pesada, tais células continuarão lá – e sempre estarão. 

Na verdade, a tal da cura virológica aparece apenas em teoria, empregando certas modalidades de terapia genética em algumas pessoas selecionadas, e não creio nela de forma definitiva. Enfim, acho que não nos livraremos da última célula infectada, e, para ser franco, nem que isso seja necessário. Não desperdiçaria recursos nessa direção.

Cbio – Os recursos financeiros fornecidos para as pesquisas em AIDS são maiores por parte de empresas farmacêuticas ou de universidades? 

Gallo – Nenhum dos dois. Provém, principalmente, do governo e entidades filantrópicas. 

No meu caso, dos Institutos Nacionais de Saúde (sigla em inglês, NIH), em Bethesda, Maryland – o mesmo que financia o trabalho da maioria dos cientistas norte-americanos mantidos pelo governo. 

Em segundo lugar, recebemos da Fundação Bill & Melinda Gates um dinheiro substancial destinado ao financiamento da pesquisa de vacinas contra o HIV. 

Cbio – No Brasil, como em outras partes do mundo, parece haver um relaxamento da prevenção ao HIV. A divulgação de raríssimos casos de “cura” consegue dar a impressão de que lidar com a AIDS é mais fácil do que realmente é? 

Gallo – A questão é “há mais complacência em relação à infecção pelo HIV?”. 

Sim, óbvio, e é compreensível, porque temos uma terapia boa e mais barata, e, nesse sentido, o Brasil contribuiu de forma duradoura. 

Dito isso, vale enfatizar que, apesar de os antirretrovirais tornarem o problema menor, não o resolvem: o HIV/AIDS é uma infecção ainda sem cura. Os soropositivos vivem melhor e por mais tempo, mas ainda carregam um vírus letal, contam com expectativa de vida um pouco mais curta do que as demais pessoas, além de um aumento na incidência de doença cardiovascular e de determinados cânceres. 

Àqueles que não presenciaram a terrível epidemia de AIDS dos anos 80/90, eu diria: sejam cautelosos. Todos ainda estamos em risco de infecção. Se isso acontecer com você, do jeito que as coisas estão agora, terá que tomar medicamentos para o resto de sua vida. 

Quem quer isso? Alguns dos medicamentos têm efeitos colaterais em longo prazo, embora não se demonstraram tão ruins como se previa.

Mesmo em relação aos indivíduos tratados de forma adequada, a questão está longe de terminar. E olha que há um monte de gente fora desse padrão: uma estimativa nos EUA apontou que, mesmo com todo o nosso cuidado, apenas cerca de 20% aderem às drogas e recebem a terapia correta.

Cbio – A AIDS sempre foi fonte de preconceito. Houve mudanças de atitude em relação a isso?

Gallo – Sim, houve. 

Entre as coisas boas tiradas dessa história horrível de AIDS estão o aumento da compreensão quanto às diferenças na sexualidade das pessoas; das diferenças dos povos do Norte e do Sul; maior cooperação entre nós e maior atenção aos direitos das mulheres.

Cbio – O senhor falou aqui da cooperação do Brasil na luta contra a AIDS. Por que razão, então, recomendou “cautela”, quando o país ameaçou quebrar as patentes de antirretrovirais (o que fez em 2007, com o Efavirenz, do laboratório Merck)?

Gallo – Dizer que está se quebrando patentes parece algo sagrado e heroico, a fim de ajudar as pessoas. Dá até para entender que às vezes seja necessário, para os mais pobres, bem como, dá para compreender promover medicamentos genéricos, os quais considero como passos na direção certa. 

Mas as patentes têm um propósito: foram introduzidas com o objetivo de proteger as descobertas, para que se possa recuperar o dinheiro empregado. Tendem a garantir alguma justiça, e, por isso, nunca recomendaria quebras corriqueiras. Precisamos ter respeito pelas leis internacionais! 

Se começarem a ser quebradas como se fosse algo normal, seria necessário pensar no que isso faria à indústria farmacêutica, que estaria perdida, iria à falência, perderia a capacidade de desenvolver terapias contra diferentes doenças. 

Portanto, quando digo que temos de ser cautelosos, isso significa que não se pode querer destruir o interesse das indústrias farmacêuticas em desenvolver terapias contra doenças em seres humanos. 

Cbio – O senhor não pretende se aposentar. No que está trabalhando? Qual sua ambição científica atual? 

Gallo – Como liderança, gostaria de deixar como legado um instituto excepcionalmente bom, na Universidade de Maryland, o qual ajudei a fundar, e o Global Virus Network (GVN) o qual co-fundei há apenas três anos, e que, no Brasil, tem um centro de excelência do qual participam, em conjunto, o Instituto Oswaldo Cruz – Fiocruz -1; o René Rachou – Fiocruz -2; e o Instituto Carlos Chagas - Fiocruz-5.

Quanto à minha ambição em laboratório, quero uma compreensão maior sobre as causas infecciosas de câncer. Eu e meus colegas já descobrimos até agora cinco tipos diferentes de vírus envolvidos na ocorrência de tumores malignos humanos. 

E tenho uma meta em relação à AIDS: gostaria de ver a cura funcional da doença, e que o meu instituto contribua nisso. Vou mais adiante: espero que a nossa candidata à vacina preventiva, cujos testes clínicos devem se iniciar até o fim do ano, demonstre-se verdadeiramente bem-sucedida. 

Cbio – Para finalizar: certa vez o senhor afirmou ter saído da faculdade “completamente despreparado para lidar com o mundo da grande ciência e da política”. O que quis dizer? 

Gallo – Como a maioria dos jovens médicos, simplesmente fui parar na universidade, sem o que me preocupar: quase nunca haver trabalhado, já que tive a sorte de contar com um pai que fez muito por mim. Estava interessado em hematologia e câncer e, após um longo período de treinamento, cheguei ao Instituto Nacional do Câncer, onde atuei em enfermarias e, finalmente, em tempo integral em pesquisas de laboratório. 

Pode imaginar como minhas experiências no mundo real eram pequenas? De repente, me vejo pesquisando uma doença imensa e mortal, através da qual estava lidando com pacientes. Em seguida, encontrando ativistas. Depois, políticos. Na sequencia, pessoas famosas. Então sou atraído ao mundo dos advogados, em relação a problemas relativos a patentes. 

Não se pode ser um especialista em tudo, apenas em algumas coisas e, de repente, minha opinião começou a ser solicitada a respeito de temas nos quais não tinha nem ideia! Pode imaginar como tudo isso pode ser um pouco assustador?


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