Diego Gracia

Entre as características dos cuidados paliativos –definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “abordagem ou tratamento que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares, diante de doenças que ameacem a continuidade da vida”– está priorizar os valores da pessoa atendida, além dos seus sintomas.

Quem enfatiza tal necessidade é o psiquiatra espanhol Diego Gracia*, diretor do programa de Mestrado de Bioética da Universidade Complutense de Madri –na verdade, um dos bioeticistas mais respeitados da atualidade– e que, além da obra de referência Fundamentos da Bioética, de 1989, é autor de dezenas de livros, entre os quais, A Questão do Valor, de 2010 e de centenas de artigos em revistas especializadas.

Como agir, então, quando os valores do médico entram em conflito com os do paciente?

Com seu jeito sempre simpático e didático, este professor de 72 anos, explica à reportagem do Centro de Bioética que se, antes, pelo caráter paternalista da profissão, o médico parecia “nem se importar” com os valores do doente, atualmente se dedica a desenvolver novas técnicas de tomada de decisão, com vistas a respeitá-los.

Porém, se as tentativas de resolução do conflito falharem, mesmo com o apoio de instâncias como comitês de ética e bioética, o melhor é apelar-se ao recurso da objeção de consciência. “Mas sempre respeitando a verdade de cada paciente”, enfatiza.

Nessa nova entrevista exclusiva, concedida no intervalo do X Congresso Brasileiro de Bioética, em Florianópolis, em setembro, Gracia focalizou a Ética dos Cuidados Paliativos, tema de sua conferência máster proferida na ocasião, explicando, entre outros pontos, a diferença entre tratamento “fútil”, “extraordinário” e “desproporcional“. Mas, como o esperado, deu especial atenção ao seu método de deliberação em Bioética Clínica, voltado a auxiliar as decisões médicas à beira do leito.

Privilégio do Centro de Bioética, que já havia entrevistado o professor em duas outras ocasiões: 2005, em O importante não é tomarmos decisões clínicas corretas e, sim, prudentes; e 2007, em Deveremos tomar cuidado para não cairmos no fundamentalismo bioético.


Diego Gracia 

Confira a íntegra da nova conversa:

Por Concília Ortona**



Centro de Bioética – A estratégia de proporcionar aos pacientes cuidados paliativos vincula-se, sempre, à Ética e à Bioética?   

Diego Gracia – Claro. No fundo, em toda a tradição relacionada aos cuidados paliativos, trabalha-se muito com a Ética.

Uma das características dos cuidados paliativos é justamente que a equipe de saúde leve em conta não só os sintomas, mas os valores dos atendidos.

Não basta questionar ou refletir sobre quanto tempo de vida tem certo paciente, e, sim, identificar os valores daquela pessoa, de forma a respeitá-los, no curso das doenças graves e/ou terminais.

A expressão “cuidados paliativos” foi cunhada no Canadá em 1975, pelo cirurgião do câncer urológico Balfour Mount, pioneiro do movimento de hospice, que se dedicou à causa depois de visitar o Cicely Saunders Hospice, na Inglaterra, e criar divisão semelhante, no Royal Victoria Hospital, Montreal.

O movimento se disseminou pelo mundo porque a ideia é a de que, em fase grave e sem cura de doença, torna-se necessário manejar os sintomas com estratégia distinta daquela que os médicos geralmente usam, ou seja, evitando sobretudo a dor e o sofrimento, em vários níveis.

O segundo princípio dos cuidados paliativos é o empenho para transmitirem-se informações corretas, utilizando estratégias capazes de deixar claro ao paciente que pode perguntar tudo o que quiser.

Normalmente, tal comunicação aberta é rara pois os profissionais temem que lhes questionem coisas que não sabem responder. O oposto requer treinamento e boa formação.

E o terceiro princípio é o apoio emocional, estabelecendo-se uma relação de empatia com quem passa por uma situação emocional complicada.

Cbio – Tais pontos vinculam-se à Ética dos cuidados paliativos?

Gracia – Sem dúvidas. A ética também consiste nisso: buscar a máxima qualidade de vida aos envolvidos em tais situações, sem tanta preocupação quanto a quantidade de vida.

Por exemplo: é possível que fármacos dados para evitar a dor abreviem a vida, mas isso não é considerado algo essencial se, em seu histórico, o paciente deixou claro que não quer sofrer.

Por outro lado, se a verdade daquela pessoa indica que a vida deva ser prolongada ao máximo, ainda que com sofrimento, é preciso respeitá-la.

Cbio – Algumas palavras em português são usadas quase como sinônimos, por parte de médicos e da imprensa. No entanto, o senhor faz uma grande distinção entre elas, ao falar sobre critérios de tomada de decisão em cuidados paliativos. Tratamentos “fúteis”, “extraordinários”, e “desproporcionais” são diferentes?

Gracia – O sentido dessas palavras é bem diverso.

Fútil é o contrário de útil. Portanto, fútil é igual à inútil.

Quando o médico reconhece a futilidade de um tratamento, por meio de procedimentos específicos de avaliação, deve contraindicar simplesmente porque não é útil. Ainda que não que seja prejudicial, estamos gastando dinheiro sem produzir nada. E, de qualquer forma, molestando o enfermo, pois tais práticas obrigam a colocar cânulas e equipamentos desconfortáveis, sem real benefício.

Esse tema da futilidade é interessante e mereceria reflexão do profissional: até que ponto recursos públicos deveriam ser gastos em coisas inúteis?

Já o que é ordinário e extraordinário é o paciente quem vai determinar, não o médico: o que é extraordinário para mim, pode não ser para você.

São opiniões subjetivas, relacionadas aos valores do atendido.  

Receber sangue é extraordinário para um doente Testemunha de Jeová. Para mim é ordinário. Determinado tratamento é visto como ordinário na opinião de alguém com muito dinheiro para gastar. Para quem não tem, torna-se extraordinário.

Quando um paciente, por exemplo, diz: “não quero ingressar em cuidados intensivos”; “não quero mais ser submetido a certos equipamentos”; ou “não suporto mais as roupas que me colocam no hospital”, é porque considera como tratamentos extraordinários, de acordo com seus próprios critérios.

Ajudaria muito se os pacientes preenchessem diretrizes antecipadas de vontade, deixando claro o que é extraordinário para si, caso não consiguir se comunicar.  

Cbio – Proporcional e desproporcional não se vinculam também à vontade do paciente?

Gracia – Nem sempre. Proporcional e desproporcional se referem à eficiência.
Por sua vez, a eficiência se baseia na relação entre custo/benefício, que pode ser mais ou menos positiva ou mais ou menos negativa. Mais ou menos proporcionada ou mais ou menos desproporcionada.

Tratamentos podem ser desproporcionados por custarem muito dinheiro e produzem pouco benefício. Não são necessariamente “inúteis”, mas os gastos seriam melhor aplicados se direcionados a situações que produzissem mais benefícios.  

É desproporcional fazer transplante de órgãos em um paciente terminal, porque a eficiência é baixíssima e custa muito dinheiro.

Não haveria problema se os recursos fossem infinitos. Como são limitados, trata-se de uma obrigação moral empregá-los eficientemente.

Tais critérios demonstram-se muito interessantes em processos de tomada de decisão, pois ajudam a resolver conflitos, principalmente do médico.

Cbio – Em nossas outras entrevistas abordamos seu método de deliberação em situações urgentes. Este método se aplica ao contexto dos cuidados paliativos?

Gracia – A deliberação é um método complicado, para o qual é necessário tempo: isso traz vantagens ao médico que atua em cuidados paliativos. Treinamento e conhecimento também são essenciais, permitindo ponderação e reflexão quanto às razões e os problemas, alcançando-se as decisões mais prudentes.

Por exemplo, médicos e demais membros da equipe de saúde participam, nos hospitais, de sessões clínicas, basicamente reuniões de deliberação que visam às melhores decisões diagnósticas, prognósticas e terapêuticas. Nem sempre temos a mesma opinião, mas podemos tentar chegar ao melhor consenso.

É a oportunidade de discutir a respeito de casos clínicos, mas também, sobre valores e deveres, chegando-se a uma deliberação moral e, com ela, à solução dos conflitos de valor.

A qualidade das decisões vai melhorar muito, deixando todos os envolvidos mais seguros e satisfeitos, dos profissionais aos pacientes e familiares.

Cbio – Por que, em sua opinião, “não é possível tomar uma decisão humana, sem formular juízo de valor”. O médico não pode se equivocar, ao decidir de acordo com seus próprios valores?  

Gracia – Claro. Por isso, é necessário levar em conta não só os seus próprios valores, mas também os do paciente.

Antigamente, pelo seu caráter paternalista, a Medicina se caracterizava por grande homogeneidade de valores, de tal forma que o médico sentia-se quase seguro ao infringir os prováveis valores do paciente –  mas ninguém parecia se importar com isso.  

Hoje vivemos em sociedades pluralistas, que quebraram a uniformidade de valores: temos valores distintos, o que é benéfico, já que o médico se vê forçado a desenvolver novas técnicas de tomada de decisão com o objetivo de descobrir os valores dos pacientes. Busca-se o que, tecnicamente, chamamos de “história de valores”: o histórico clínico tenta abranger tudo o que pode ser importante no manejo da enfermidade.  

É necessário explorar os valores relacionados às questões do corpo e da saúde, incluindo religiosos, culturais, etc. Os demais, não interessam em nada.

Veja: nem sempre o médico consegue explorar os valores e integrá-los ao processo de tomada de decisão. Mas deveria, da mesma forma que identifica os problemas no corpo do atendido.

Cbio – E quando os valores do paciente entram em conflito com os do médico ou de outros profissionais da equipe de saúde?

Gracia – Isso pode acontecer, ainda que não seja tão comum quanto se supõe.

Quando há estrutura institucional bem organizada, muitos conflitos podem ser resolvidos: há várias possibilidades. Quando não se consegue, sob o risco de afetar os direitos básicos das pessoas, o profissional deve expressar objeção de consciência, mas não pode interferir: sempre haverá colegas dispostos a cuidar daquele paciente.  

São condições relacionadas, por exemplo, ao aborto e ao suicídio assistido.

A propósito: muita gente acha que os conflitos mais freqüentes se vinculam ao início da vida, mas cerca de 70% das petições de orientação, recebidas por comitês de ética na Espanha, dizem respeito ao final de vida.

Em outros países, há artigos que mostram que é algo bem semelhante.

Cbio – Referem-se à eutanásia?

Gracia – O grande conflito não é a eutanásia. É a retirada de medidas para prolongamento da vida, sobretudo, em cuidados paliativos.

Os dilemas surgem quando são usadas as caríssimas técnicas de suporte vital a pacientes que não tiram nenhum benefício delas, prolongando indefinidamente a situação: a equipe percebe que ele não vai sair dali.

Tudo se complica quando a família pressiona para a manutenção dos equipamentos, apesar de o médico explicar que não existe nenhuma chance de recuperação ou, mesmo, de melhora.

Mesmo assim, a instituição precisa contar com sistemas de resolução de conflitos, capazes de evitar ao máximo que o caso chegue a instâncias externas, como ao âmbito jurídico.  

Um princípio básico diz que, quando um hospital não consegue resolver conflitos contando com seus próprios recursos, tornando-os crônicos, deve tomar isso como um fracasso pessoal.

* Autor de dezenas de livros, como: Ética de la calidad de vida, 1984. Fundamentos de Bioética, 1989; Primum non nocere: El principio de no-maleficencia como fundamento de la ética médica, 1990, e La deliberación moral. Foi co-autor de mais de 40 livros. Escreveu ainda cerca de 150 artigos em revistas especializadas.

** Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp. Especialista em Bioética e Mestre em Saúde Pública (USP)

 


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